LUTO

Morre Ziraldo, criador do 'Menino Maluquinho' e mestre da literatura infantil

O cartunista morreu aos 91 anos, na casa dele, no Rio de Janeiro

06/04/2024 | Tempo de leitura: 5 min
da Folhapress

Divulgação

Ziraldo teve uma carreira profícua e criou charges, cartuns, pinturas, cartazes, murais, histórias em quadrinhos, livros infantis e crônicas
Ziraldo teve uma carreira profícua e criou charges, cartuns, pinturas, cartazes, murais, histórias em quadrinhos, livros infantis e crônicas

O cartunista Ziraldo, criador do célebre personagem "O Menino Maluquinho", morreu na tarde deste sábado (6), em sua casa no Rio de Janeiro, aos 91, de falência múltipla dos órgãos. A informação foi confirmada por Daniela Thomas, filha do artista. Ziraldo teve uma carreira profícua e criou charges, cartuns, pinturas, cartazes, murais, histórias em quadrinhos, livros infantis e crônicas.

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Além disso, transbordou o limite de uma folha de papel e virou um intelectual público disposto a distribuir opiniões para salvar o mundo. Sempre se considerou um "aspite", isto é, um assessor de palpites. Para evitar mal-entendidos, chegou a propor a adoção do ponto de ironia na língua portuguesa.

O humor de Ziraldo se expandiu na revista O Cruzeiro e ganhou expressão política a partir de 1963, no Jornal do Brasil. No Jornal dos Sports, em 1967, Ziraldo editou o suplemento Cartum JS, revelando os novatos Henfil e Miguel Paiva. Criado em 1969, no vácuo do Ato Institucional nº 5, o AI-5, o semanário humorístico O Pasquim contribuiu para a transformação de Ziraldo em um artista popular.

Apesar das restrições da censura, o Pasquim descabelou seu estilo e fortaleceu sua oposição à ditadura militar. Ele sofreu três prisões nesse período. O salto para a literatura infantil deu um rosto mais terno ao mineiro. A revista da turma do Pererê, editada entre 1960 e 1964, e os livros "Flicts", de 1969, e "O Menino Maluquinho", de 1980, viraram fenômenos editoriais.

"Ziraldo é um dos pilares do design brasileiro, praticante dessa forma polivalente de desenhar, que é fazer quadrinhos, cartum e charge. Nesse sentido, leva o troféu porque vários de nós fizemos as três coisas, mas nenhum fez com a profusão e a competência dele", afirmou em entrevista à Folha Laerte, que teve "o primeiro impacto de uma linguagem gráfica" ao ver uma capa da revista Pererê, em 1961.

Ele deixou marca própria e original por onde passou
Ziraldo sempre disse que escrever e desenhar um livro são como gerar e criar um filho. Depois da morte, aos 91 anos, do poeta, designer de primeira, também cartunista, jornalista e cronista que ele foi, sua obra, mais do que nunca, pertence a todos os brasileiros, integra o inventário simbólico do país.

O autor do personagem Menino Maluquinho inventou um padrão visual e um estilo de escrever para o público infantil --nisso reside a principal contribuição para a formação da criança que tinha entre cinco e 12 anos entre 1966 a 1980.

Onde atuou, o artista deixou marca própria e original. "O Pasquim" é considerado o principal jornal crítico da contemporaneidade. Ziraldo foi preso político pelo conjunto de edições e produção no semanário, veiculado durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Entre os intelectuais que o criaram destacam-se Paulo Francis, Millôr Fernandes, Jaguar, Luís Carlos Maciel. Nesse momento, o texto vale tanto quanto o cartum, que fala mais alto em tempos de vozes silenciadas, exílios e prisões.

A partir da "A Turma do Pererê" (1961) e em forma de histórias em quadrinhos, Ziraldo deu início à revisão da literatura infanto-juvenil que se produzia na nação. Leitor de Monteiro Lobato (1882-1948), mas fã mesmo de Machado de Assis (1839-1908), o autor cumpriu a fase da releitura dos mitos difundidos às crianças.

Com isso, pôs em cheque o imaginário brasileiro durante pelo menos 50 anos, já que o gibi se transformou em coleções de livros adquiridos pelo governo para escolas públicas. A lenda sincrética do saci convive com a figura da onça e do índio brasileiros e com a tartaruga das fábulas herdada do Oriente.

Os personagens são ainda pretextos para o autor opinar sobre a humana forma de viver de seu tempo, transporta-os para o ambiente contemporâneo, com preocupações éticas e ecológicas. Na esteira das fábulas e crônicas com animais, nasceu "O Bichinho da Maçã", ponte para a produção intelectual de Ziraldo para adultos, já que o personagem é um contador de piadas e retoma a linguagem dos cartuns, que deu ao jornalista notoriedade em "O Pasquim".

Segue-se, então, sua obra-prima, "Flicts" (1969), combinação apropriada entre a concepção de livro ilustrado e logotipos industriais, que entravam na poesia como um tipo especial de vocábulo. Aliada à nova forma, versos representam a tristeza de um menino-cor, à procura de seu lugar no mundo. Depois veio a crônica-cartum-poema "O Menino Maluquinho", traduzido até em catalão. Intimista, o livro destaca a tristeza lírica da criança diante da separação dos pais, hoje lugar-comum no cotidiano infantil.

O trânsito pelo trabalho publicitário transferiu saberes para o campo da crônica poética na produção infantil. Ziraldo virou campeão de vendas e nunca mais saiu de cartaz, em livros, filmes, gibis, peças de teatro, tudo isso a partir dos desdobramentos da obra em curso.

É cedo para avaliá-la. A obra dá-se a ver por inteira agora e exige revisão. Por que ele não foi escolhido para a Academia Brasileira de Letras? Por que não entrou nas antologias de poesia, como reconhecimento pelas instâncias legitimadoras, e permanece restrita ao universo supostamente inferior da literatura infantil, com mais de 150 livros publicados?

Antes o poeta-pintor fosse eterno, pois não há tristeza que cesse diante da morte de Ziraldo. Parafraseando a frase de Roberto Carlos a Caetano Veloso: "Artista nunca envelhece". Por que tem de morrer?

Há uns tempos, chegou a dizer disparates em opiniões à mídia, porque conquistou o direito de revelar o que considerava a crueza de um regime social, político e econômico mais injusto do que em seu tempo de juventude. Repetiu como papagaio que os pais hoje deixam as crianças "mais burras e submissas". Que isso sirva a todos de lição e fique como herança de quem nunca teve medo de lutar por um Brasil humano.

* Com Mônica Rodrigues da Costa

2 COMENTÁRIOS

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  • Baltazar
    06/04/2024
    \"O que fazemos na vida ecoa pela eternidade\". Ziraldo nos deixou um mundo melhor do que ele recebeu.
  • Tati
    06/04/2024
    É interessante que esse pessoal que pensa, era contrário à Ditadura Militar... acaba sendo bem reflexivo.