LITERATURA

Grupo de leitura vira arma contra o racismo em colégio de Sumaré; veja depoimentos

Estudantes do ensino médio de colégio estadual na periferia criaram o Black Girls e mudaram a vida dos participantes; ano passado, foram parar na feira literária Flip.

Por Eduardo Reis | 11/06/2023 | Tempo de leitura: 8 min
Especial para a Sampi Campinas

Sampi Campinas

Membros do Black Girls pretendem continuar firmes na exaltação da luta pelo reconhecimento à literatura negra
Membros do Black Girls pretendem continuar firmes na exaltação da luta pelo reconhecimento à literatura negra

Há um ano e meio, a estudante Ana Clara Fernandes, de 16 anos, teve a ideia de começar o ‘Black Girls’, um clube de leitura voltado ao incentivo à literatura negra. À época, a estudante do terceiro ano do ensino médio não imaginava que, 18 meses depois, o projeto dobraria a quantidade de leitores na escola em que estuda e arrancaria suspiros, sorrisos e lágrimas.

No fim do ano passado, graças aos esforços de colegas e professores do colégio em que estuda, no bairro Jardim d’Allorto, em Sumaré, ela e os colegas, todos estudantes da rede pública estadual, foram parar no Rio de Janeiro. O motivo? Participaram da Feira Literária de Paraty (Flip), um dos maiores simpósios de literatura do país.

Na escola, as salas de aula simples carregam o arquétipo arquitetônico de um colégio comum da periferia de uma das maiores cidades da Região Metropolitana de Campinas (RMC), mas, no entanto, viraram verdadeiros celeiros de discussão, debate e construção de conhecimento.

O clube literário rapidamente cresceu e hoje conta com pelo menos 13 alunos. Mesmo assim, dezenas de outros estudantes se motivaram à leitura graças a ação do grupo.

A iniciativa, que começou como uma provocação aos estudantes para que consumissem mais livros escritos por autores negros e negras, fez com que houvesse um salto na procura por livros na biblioteca da escola. Se antes a média era de 100 empréstimos semanais, o número saltou para 200, conforme os registros da biblioteca.

A ação é uma contrapartida aos casos de racismo registrados em colégios das redes pública e particular nos últimos meses. No último dia 26, uma adolescente de apenas 14 anos desmaiou depois de ser agredida por três alunas em um colégio estadual em Monte Mor. A mãe registrou boletim de ocorrência por racismo, já que a filha, negra, relatou que sofria injúrias por ter cabelo afro. Já no fim do ano passado, oito alunos do ensino médio foram expulsos de uma escola particular após criarem um grupo no WhatsApp para atacar alunos negros. Entre as ofensas desferidas, estavam alusões ao ditador nazista Adolf Hitler.

“A gente está descobrindo um mundo que não existia essencialmente. O branco sempre saiu como herói, mas agora estamos vendo o lado do negro na história. É a história de quem sempre foi o vilão e de quem foi escravizado”, diz Ana Clara, ao fundamentar que a literatura negra é uma poderosa arma contra o racismo. “Incentivar a literatura negra é tirar o preto do objeto e trazer à luz da humanidade”, conclui.

Bell Hooks, Conceição Evaristo, Cidinha da Silva, Bianca Santana, Djamila Ribeiro e Lázaro Ramos são alguns dos escritores que o grupo estuda com frequência.

A professora de história do colégio Eliana Cristo, de 50 anos, foi responsável por dar vida ao projeto que partiu de Ana Clara. “A ideia é exaltar a representatividade. Nós estamos em uma escola pública em que nem sempre as meninas, quando terminam o ensino médio, continuam estudando. O objetivo também é que, a partir do ensino médio, elas almejem entrar uma universidade. E ano após ano, o que percebemos é que a maioria parte para o mercado de trabalho, se casa. Então a literatura tem esse papel, de mostrar que a mulher negra pode ocupar o seu lugar”, explica.

Ana Clara, por exemplo, quer cursar história da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No restante do grupo, todos os alunos, muitos dos quais não tinham hábito de ler, já têm pretensões futuras, seja na universidade ou em outras qualificações.

Questão legal
Em janeiro, a lei 10.639, que inclui oficialmente nos currículos escolares o ensino de história e cultura afro-brasileira, completou 20 anos. Especialistas destacam que a lei é importante, mas necessita de monitoramento.

 “A formação do docente, o processo de alteração dos livros didáticos, os livros paradidáticos, hoje em dia, eu vejo esse movimento de literatura infantojuvenil que vem protagonizando com personagens negros e com a história de forma positiva da população negra. Esses são pontos que me fazem olhar com muita alegria mesmo, pensando a lei”, afirma Juliana Yade, especialista em educação do Itaú Social.

Neli Edite dos Santos, professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e organizadora do livro Construindo uma Educação Antirracista: Reflexões, Afetos e Experiências, diz que, apesar de observar entraves para a implementação da lei, reconhece que esta é uma questão que expõe questões enraizadas na sociedade. “Estamos lidando com o nosso escravismo, com a nossa colonialidade, com as hierarquias étnico-raciais, com o mito de democracia racial que tanto mal fez e faz ao país. Entendo que o movimento antirracista e o movimento antirracista na educação, por si, já é produto dessas leis.”

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Alana em parceria com o Geledés, Instituto da Mulher Negra, cujos resultados foram divulgados em abril último, revelam que apenas 30% das escolas públicas do país cumprem a lei.

O não cumprimento da lei é sentido pelos alunos que hoje compõem o Black Girls. Todos eles só passaram a ter contato com cultura afro só agora, no ensino médio.

Todos os estudantes, em sua maioria meninas, possuem uma estreita ligação com o grupo. Ali, eles se sentem mais fortes, amparados uns pelos outros no apogeu de suas inseguranças. Cada um contou, nos parágrafos que se seguem, sobre a importância do Black Girls em suas dúvidas de adolescentes.

Depoimentos
Amanda Sales, 16 anos – “Fui uma das primeiras a entrar, a convite da professora Eliana. Ela me convidou sob o argumento de que eu tinha uma boa capacidade de organização, depois que eu consegui realizar um trabalho com os ‘mais bagunceiros da sala’. Conheci o livro Quando me Descobri Negra, da Bianca Santana, que me deu identidade”. (Quer cursar pedagogia na Unicamp)

Giovana Daga, 15 – “Participei do projeto 'Naturalmente Cacheadas' quando estava no 6° ano (do ensino fundamental). De lá para cá, aprendi sobre empoderamento. Logo no início deste ano, quando cheguei à escola, não pude ficar de fora. Na hora eu quis participar”. (Quer estudar medicina na Unicamp).

Giovana Campana, 15 – “Quando eu cheguei aqui, não tinha hábito de ler. Logo quando vi, me interessei muito. Peguei para ler Olhos da Água. Em poucos meses desenvolvi hábito à leitura e vi o quanto isso é importante, sobretudo com as escritoras negras. Abriu minha mente”. (Quer fazer relações internacionais).

Bruna Beatriz, 17 – “Esse coletivo me ajudou muito no meu projeto de vida. Não tinha hábito de ler autores negros, me ajudou na parte de inspiração. Quero ser escritora e estou escrevendo dois livros”. (Quer cursar medicina ou literatura).

Júlia, 16 – “Comecei a ler neste ano. Ainda estou lendo pouco, mas já consigo entender a importância de se valorizar a mulher negra, que sempre foi marginalizada pela cor de sua pele, por seu cabelo, enfim”. (Quer fazer fotografia em uma universidade federal).

Pieta Fernanda, 15 – “Eu já tinha feito um projeto sobre cantoras negras no ensino fundamental, mas nunca tive o hábito de ler. O primeiro livro que tive contato foi Terras Sonâmbulas, de Mia Couto. Tenho percebido o quanto é importante conhecer a história negra”. (Quer cursar pedagogia e ser professora de artes).

Helena Borges, 15 – “Ano passado, na outra escola que eu estudava, não tinha biblioteca. Entrar nesta aqui e ver que tem uma prateleira voltada à literatura negra foi fantástico. A diretora é negra, tem professores negros. Cheguei pensando em fazer um projeto, mas quando descobri que já tinha o Black Girls, entrei sem pensar duas vezes. Ajuda na autoestima”. (Quer cursar jornalismo ou direito).

Luiz Fernando Gonçalves, 15 – “Falar sobre cultura e passado negro não era presente na minha vida, agora é. Eu ignorava o racismo, e não sabia o que ele era. Quando entrei vi que realmente é importante e comecei a me engajar. Eu já sofri racismo e homofobia, já que sou gay. Uma vez estava voltando da escola e um grupo de meninos me chamou de macaco e falou que eu devia ser estuprado – o adolescente ficou em silêncio repentinamente e começou a chorar”. (Quer fazer psicologia ou direito).

Raquel dos Santos, 16 – “Na escola que eu estudava não tinha nada, e foi bastante coisa pra mim, o Black Girls, para conhecer sobre minha cor, minha autoestima. Fez diferença pra mim. Minha mãe notou a mudança desde que entrei no projeto. Bastante importante pra mim”. (Quer cursar cinema).

Eliza Rosseto, 17 – “Entrei na escola esse ano e assim que eu soube do Black Girls já quis entrar. As escolas que eu estudei nem tinham biblioteca. Aí eu chego aqui, no intervalo, e todo mundo estava lendo, lendo mesmo. As meninas me incentivando a ler, cobrando. O primeiro livro que eu li foi Quando me Descobri Negra, e foi marcante, porque pela primeira vez tive consciência de que sou preta. E ser preta é o lado mal. Mas eu descobri que é uma coisa cultural. Agora estou sempre militando, participando. Me aceito, hoje em dia”. (Pensa fazer moda, fotografia ou cinema).

Representatividade
Também participante do projeto, o professor de língua portuguesa Fábio Gustavo, que leciona há mais de 30 anos, se emocionou tão cedo colocou os pés na escola. “Achei o meu lugar. Isso aqui é fantástico e merece ganhar visibilidade”, conta o docente, que em mais de três décadas não presenciou algo parecido.

Munidos de um perfil no Instagram, interesse coletivo e empenho, os membros do Black Girls pretendem continuar firmes na exaltação da luta pelo reconhecimento à literatura negra.

1 COMENTÁRIOS

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  • Silene Gomes da Silva
    12/06/2023
    A Escola Estadual Luiz Campo Dall\'Orto Sobrinho sente orgulho dessas meninas fantásticas!