Na rua Barreto Leme, número 994, no Centro de Campinas, se estabelece uma das maiores figuras da metrópole. Logo na entrada, estantes enfileiradas de livros dão indícios de uma longa história de tradição. No fundo, um mar a perder de vista de discos de vinil se misturaram à decoração vintage do 'Sebo Casarão', considerado por muitos, patrimônio histórico da cidade.
Sentado em uma cadeira, Gilberto de Almeida, o Giba, um dos sócios restantes, encarava atentamente um dos milhares de discos da loja. Com um olhar ‘treinado’ restaurava o material em cima de uma mesa velha de madeira. Ao lado, uma garrafa de café e uma cuia de chimarrão, que o faziam companhia.
Mas, o que poucos sabem é que, antes de abrir o espaço, o preferido de muitos campineiros, Gilberto trabalhou como químico por 10 anos na Pfizer e 20 na Janssen, duas das grandes farmacêuticas que 'salvaram' o mundo durante a pandemia.
"Eu me formei na Fundação Oswaldo Cruz, em São Paulo, mas mesmo gostando demais da profissão sabia que esse não era um rumo que eu seguiria para sempre”, disse em um tom emocionado.
Como químico, a carreira foi árdua. Horas sem dormir, dias fora de casa e compromissos cancelados fizeram parte da lista enorme de abdicações durante anos. Mas, assim como o mundo, a vida de Gilberto estava prestes a girar.
Em 1995, Gilberto decidiu se aposentar pela Johnson. Por ser uma empresa Belga, teve direito ao INSS e outra aposentadoria, ou seja, dinheiro não era o real problema. A necessidade de se sentir útil e voltar a ativa foi a motivação que ele encontrou para retornar uma paixão de criança deixada de lado.
Trajetória do Sebo Casarão
Conhecido por ser o maior e mais tradicional de Campinas, a ideia do Sebo Casarão surgiu de um aposentado de saco cheio de ficar em casa. Após receber o benefício, Giba começou a olhar atentamente a rotina que o esperava e percebeu que ficar preso assistindo 'Sessão da Tarde' não era sua praia.
“Assim que passou uma semana eu já não queria mais ficar ali. Via minha mulher sair para trabalhar e me perguntava o que de bom tem hoje? Não saber o que fazer me preocupava.” relembrou
Impaciente com a nova rotina, Gilberto em uma conversa com a esposa entendeu que abrir uma loja de música e resgatar as memórias da infância quando ouvia Bill Haley na sala de estar era o que lhe daria prazer. Só que, para se tornar realidade, o primeiro passo era controlar a impulsividade e amor pelos discos.
Em uma tarde qualquer, assim que a ideia foi ganhando forma, Giba sentou ao lado de sua esposa para contar os novos passos e ouviu atentamente os conselhos. ‘olha eu acho bom, mas você vai ter que entender que os discos são para a loja e não para você’. Na época, 2.000 LP 's faziam parte da coleção de Giba.
Após rever as possíveis estratégias, a primeira iniciativa foi ir a São Paulo para abrir uma franquia. Nascia então o ‘Sebo de Elite' na avenida Aquidaban, em Campinas, mas a ideia, embora cheia de expectativas, se sustentou por apenas dois anos. Falta de gestão e parceiros foi o principal ponto.
Sem querer parar, insistiu e abriu uma loja no shopping, mas também não vingou. Cansado de tentativas mal sucedidas. Gilberto e mais 6 amigos abriram a 'Split Splash', o que mais tarde, em 2005, viria a ser o Sebo Casarão.
“O negócio estava prosperando e eu precisava de um lugar maior, ali não cabia mais as minhas ideias. Foi aí que eu encontrei o Casarão. Era um antigo prédio onde foi um cartório. De cara eu aluguei”, disse Giba
Especializado em discos, o Sebo foi logo ganhando reconhecimento e se transformou no mais 'queridinho' da cidade. Pessoas de vários cantos até mesmo do mundo se encontravam para discutir músicas.
Histórias
Giba conta que em uma dessas conversas um piloto de avião procurou a loja dele. Encantado com as relíquias, passou a olhar atentamente qual material levar até que, em cima da mesa, encontrou um disco raro.
De imediato acionou Gilberto na intenção de comprar, mas logo foi informado que o tal “disco raro” não estava à venda.
Desolado, pediu para que um preço fosse colocado "qual for o valor eu levo", mas Giba não abriu mão, pois tinha conseguido em um leilão e que demorou mais de 20 dias para chegar.
O piloto, que hoje é assíduo da loja, saiu sem levar o disco, mas 3 dias depois conseguiu arrematar o mesmo material em um leilão. "É exatamente isso que me faz feliz, criando amizades com pessoas incríveis", disse Giba.
“E o pior foi que ele veio aqui esfregar na minha cara que agora também tinha o mesmo disco raro que o meu”, brinca.
Os anos foram passando e o negócio foi crescendo, só que, em 2021, mas uma etapa iria abalar as ideias construídas para a loja. A pandemia chegou e o sonho começou a ficar cada vez mais insustentável.
"Durante as restrições de isolamento social a gente até tentou ficar com o prédio (Casarão), mas o dono não negociou o imóvel. Eu então entreguei a chave na hora, sem nenhum sentimento, nenhum mesmo", relembrou Gilberto
Assim como das outras vezes, a insistência foi a principal chave para manter o Sebo, foi então que encontraram o prédio que hoje abriga o Sebo Casarão. Um antigo restaurante na rua Barreto Leme.
Fechar depois de 15 anos, com certeza foi uma tristeza para os amantes do lugar, mas em meio ao caos, a ideia se sustentou e, mais uma vez, ressurgiu. Segundo Gilberto, mesmo com a crise da pandemia e a mudança para as vendas online, muitos ainda passam pelo local só para ‘bater um papo', o que deu força, mais uma vez, que a ideia de não ser só um químico aposentado estava certa.
Daqui para a frente
O Sebo Casarão ainda continua sendo estimado para muitos amantes de livros e principalmente dos discos. Embora grande parte da receita, hoje, se sustente pelas vendas online, muitos ainda preferem o convívio e a interação presencial. Questionado, Gilberto disse que só deixa o Sebo o dia que não aguentar mais: “entrego a chave e vou embora.” Segundo ele, a motivação de ter algo para fazer todos os dias e gerar emprego é uma alegria inexplicável.
A proposta para o novo endereço é criar em 2023 um espaço cultural com café e amostra de discos considerados relíquias. Uma forma de resgatar o convívio deixado de lado durante a pandemia.
Interrogado sobre qual é a melhor atividade, entre e químico e dono de sebo, Gilberto em um tom de certeza disse “com certeza, um empate técnico”, e reforça que fez a escolha certa ao seguir com o sebo.