FIM DO HOSPÍCIO

Ex-interno de manicômio desativado em Campinas ingeriu 17 comprimidos por dia em 14 anos

Por Thauany Barbosa | Especial para Sampi
| Tempo de leitura: 6 min
Thauany Barbosa/Sampi Campinas
Silvio Burza de 80 anos, ex-interno da ala da psiquiatria do manicômio Bierrenbach, em Campinas. Hoje desativado
Silvio Burza de 80 anos, ex-interno da ala da psiquiatria do manicômio Bierrenbach, em Campinas. Hoje desativado

Imagina só se, de uma hora para a outra, você deixasse de ver o sol redondo e começasse a vê-lo quadrado. O que você faria? Bom, apesar da expressão ser bastante conhecida para representar a vida dentro da prisão, ela cabe perfeitamente para retratar a história que o campineiro Silvio Burza, de 80 anos, viveu durante 14 anos internado em seis manicômios diferentes.

Para entender como isso se deu, é preciso voltar ao passado. O início dessa trajetória sombria começa na tarde do dia 19 de dezembro de 1983, quando Burza, ao ir a uma consulta com o psiquiatra, recebeu o diagnóstico de bipolaridade com episódios maníacos. A princípio, foi solicitada uma internação imediata de 6 meses no Hospital Santa Fé em Itapira, autorizada pela família. Mas, mal sabia ele que esse era o início de uma longa trajetória.

Na época da primeira internação, Burza tinha 40 anos e três filhos. Segundo ele, esse foi o momento em que mais escreveu cartas, para conversar com eles. Uma escrita, feita em papéis velhos, durou 14 anos.

Assim que chegou ao primeiro manicômio, hoje um hospital de Itapira, Burza sentiu a rotina mudar drasticamente. De vendedor de doces no Centro de Campinas, passou a ser mais um número da ala psiquiátrica. Mais um usuário que se somava à quantidade enorme de pacientes que transitavam pelo pavilhão central.

“Era assim, às 6 horas eles acordavam a gente, aí tinha a medicação, depois vinha o café. Aí a gente era colocado no pátio com chuva ou com sol. Quando chovia a gente ficava lá mesmo, essa era a nossa rotina”, lembrou Burza.

Apesar da autorização da família, o tratamento desumano não era de conhecimento deles. De acordo com Burza, em um dos dias em que se preparava para sair do pavilhão recebeu, de um enfermeiro, um eletrochoque - técnica usada para induzir convulsões em pacientes. Na hora, ele ficou sem reação e aos poucos foi perdendo o sentido até desmaiar por completo. Só acordou horas depois, mas já não se lembrava de nada.

“Eu não sabia o por quê. Não sabia nada e nem o motivo de eu estar ali. Eu não era agressivo como os outros da ala e nem nada. Como eu estava naquela situação?”, contou o ex-interno.

Assim que os seis meses terminaram, Burza voltou a Campinas, acompanhado da família que ainda não tinha conhecimento do tratamento desumano.

Assim que chegaram, uma consulta com o psiquiatra foi marcada para rever a medicação. Durante a conversa, Burza descobriu que mais um longo período de internação o aguardava, assim que saísse do consultório.

Àquela altura, ficar nos manicômios era uma necessidade, pois a falta dos medicamentos ingeridos se transformava em uma abstinência sem fim, já impossível de ser controlada.

“Durante a minha primeira internação, além dos eletrochoques, cheguei a usar camisa-de-força e todos os dias tomava 17 comprimidos. Não sei o por quê, mas eu tomava.”

Somando os comprimidos em 14 anos de internação, durante o tempo em que Burza passou internado nos manicômios, mais de 35 mil cápsulas foram ingeridas. No entanto, apesar de fortes, não geraram sequelas.

Depois da primeira internação, foi uma atrás da outra. Algumas que duravam anos e outras de meses. Mas, o "entra e sai" das internações foi algo bastante recorrente para Burza. Uma delas foi no hospital Bierrenbach, em Campinas, hoje desativado. Segundo ele, ficar na ala psiquiátrica era tão automático que quando saía e recebia alta era impossível ficar em casa.

“Eu fiquei no hospital mesmo depois de desativado, fiquei um ano lá porque ainda o médico falava que eu não sabia viver em sociedade e era preciso uma reabilitação.”

A vida de internações era algo que fazia parte de Burza, mesmo no começo dos anos 1990, quando uma mudança estava começando a ser feita no Brasil. Mas isso foi algo que colocaria um fim aos tratamentos desumanos. Manicômios e hospícios já não eram mais vistos como um tratamento adequado para pessoas com transtornos mentais. O que mais tarde vai deu origem à Reforma Psiquiátrica.

“Eu lembro um dia que eu estava internado, ai o médico veio falar que eles iriam começar a preparar a gente para sair da internação. Eu não entendi muito, foi de uma hora para outra”, relembrou Burza.

Com a Reforma, os manicômios e hospícios foram obrigados a fecharem. E foi a partir desse momento que Burza entrou para integrar o Cândido Ferreira. Com o fechamento, os pacientes internados foram direcionados para os Caps - Centro de Atenção Psicossocial - que tinha a função de tratar o paciente sem o auxílio da internação, muito menos de técnicas desumanas.

“Quando eu saí, o Dr. José Ari Carletti disse que era pra ir até o Caps da região onde eu receberia todo o tratamento, eles simplesmente meio que expulsaram os internos e foi assim que eu vim parar no Cândido.”

Apesar de ter tido um passado difícil. Burza, hoje com 80 anos, se lembra de tudo o que viveu. O tratamento desumano não fez com ele deixasse a vida de vendedor de doces. Após sair da internação e receber alta do Caps. Burza hoje trabalha como vendedor dentro do restaurante Cândido Ferreira, antigo manicômio de Souza, também desativado após a promulgação da lei da Reforma Psiquiátrica.

“Hoje eu faço uso da medicação, mas não tomo como eu tomava antes, tudo tá mais fácil e tranquilo. Finalmente acabou. Hoje eu tô me colocando de novo na sociedade, até trabalho eu tenho”, concluiu Burza.

Cândido Ferreira
Fundado em 1924, o Cândido era um manicômio que tratava de pessoas com distúrbios mentais e dependências químicas. No entanto, de forma desumana, submetia os usuários ao uso de eletrochoque, camisa-de-força e o confinamento de pacientes.  Nudez, nessa época, também era considerado um tipo de tratamento, o que mais tarde vai dar origem a ‘praça dos pelados’, pavilhão destinado às pessoas que foram submetidas a esse tipo de tratamento.

Com a Reforma, o manicômio foi desativado e, no lugar, foi criado um centro de tratamento psiquiátrico, mas de forma a valorizar a vida sem utilizar a internação. Como tratamento, hoje são oferecidas oficinas de inclusão social pelo trabalho e projetos culturais para pessoas com transtornos mentais e dependentes químicos. Atualmente  6.500 atendimentos são feitos durante o mês.

Reforma Psiquiátrica
A Reforma partiu da indignação frente às abordagens e terapias usadas  no tratamento de pessoas com transtornos mentais  dentro de  manicômios e hospícios. Com a criação do  Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental  na década de 90 a busca pelo fim desses métodos passou a ser algo reivindicado pela Organização Mundial de Saúde, o que mais tarde deu a origem à Lei 10.216 sancionada só em 2001 pelo então Presidente à época, Fernando Henrique Cardoso que em  6 de abril proibindo assim,  a existência de manicômios e hospícios. Um importante marco para a garantia dos Direitos Humanos.

Comentários

1 Comentários

  • Marcel Roberto Barbosa 21/11/2022
    Muito bom o conteúdo desta reportagem