Palha brasileira

Língua e Culinária são aspectos da cultura que revelam um traço comum: a transformação que sofrem ao logo do tempo, de forma constante,

04/02/2018 | Tempo de leitura: 4 min

Ingredientes
 1 lata de leite condensado
 2 colheres (sopa) de manteiga
 5 colheres (sopa) de chocolate em pó
 1 pacote de bolacha doce tipo maisena
 1 colher (café) de essência de baunilha
 
Língua e Culinária são aspectos da cultura que revelam um traço comum: a transformação que sofrem ao logo do tempo, de forma constante, numa reconfiguração que em geral mantém o espírito mas modifica detalhes da forma. Idiomas e receitas seguem sob o ritmo de pressões diversas, moldando-se a circunstâncias externas e à criatividade do ser humano. Dessa forma, quando imigrantes chegam ao novo país que escolheram para viver, e não encontram todos os ingredientes que necessitam para reproduzir seus pratos, acabam utilizando outros semelhantes e começam a alterar uma fórmula que havia se mantido por muito tempo. Aconteceu aos italianos que aportaram em levas em nosso país, entre o final do século XlX e o começo do XX.
 
Pode acontecer também de as receitas serem apropriadas pela cultura que acolhe os imigrantes e serem alteradas e recriadas por razões várias. Por isso muitos oriundi  se surpreendem com pratos apresentados como italianos mas não  reconhecidos como tais. Uma agência de notícias, a ANSA, divulgou no ano passado lista de pratos italianos que, na verdade, são uma criação —ou adaptação— brasileira. Eles só existem por aqui. Vamos listá-los, a título de curiosidade: cappuccino com canela; fogazza; frango com polenta; linguiça calabresa; molho à bolonhesa; bife à parmegiana; rondelli, sardella, pizzas com coberturas de milho, catupiry, ovo cozido, cogumelos et alii. E a famosa paglia.
 
Surpresa? Pra mim também foi. Cappucino verdadeiro leva café tipo espresso diluído em leite e vaporizado com creme. Só isso. Fogazza não é tradução da genovesa focaccia, pão rústico assado e temperado com azeite e sal. Entre nós, a fogazza tão presente nas quermesses é muito mais parecida com o napolitano panzerotto, massa recheada com tomate e muçarela e frita como pastel. O frango com polenta, ícone das cantinas paulistanas, não existe na Itália, que tem pratos de caça com polenta, mas com frango não. Linguiça calabresa não é italiana? Não, senhor; não, senhora. Pelo nome não haveria dúvidas: seria originária da Calábria. Mas nada disso; a linguiça mais parecida com a calabresa produzida no Brasil se chama salsiccia cacciatora e é um embutido típico do Centro da Itália. E se afirmássemos que em Bolonha não tem molho à bolonhesa? Pois é fato. Pelo menos não com esse nome. O molho, na verdade, é chamado de ragu, leva horas para a carne ficar bem cozida e é servido apenas com tagliatelle. E por incrível que po
ssa parecer, o bife à parmegiana, um dos pratos mais servidos nos almoços executivos brasileiros, não é de Parma, apesar do nome. Na Itália, parmigiana [com i] é a lasanha de berinjela, feita com fatias do legume no lugar da massa. O prato italiano que mais se parece com a versão brasileira é o filé alla pizzaiola, servido com molho de tomate, mas sem muçarela gratinada. A pizza é um prato tradicional italiano, mas com tantas coberturas inusitadas, como as oferecidas em cada canto do nosso país, é totalmente absurda. Rondelli? O nome até é italiano, a elaboração parecida, mas nos menus de lá aparece como rotoli ou rotolini. A sardella original é feita com sardinha e condimentos, e foi criada pelos calabreses, que lavam o peixe marinho com água doce e o colocam para secar por cerca de seis meses, macerando-o então com especiarias. Já a paglia italiana é, na verdade, totalmente brasileira.  A receita leva brigadeiro (o que já deveria ser um indício de origem) e bolachas. É quase certo que foi inspirada no salame al cioccolato, feito com chocolate e biscoitos, mas formatado de maneira diferente e recheado com frutas secas, amêndoas e nozes. No lugar do brigadeiro, entra uma espécie de ganache de chocolate com manteiga como ingrediente de ligação.
 
E é esta a receita deste domingo, boa para alegrar a criançada que ainda continua em férias porque escola, pra valer, só depois do Carnaval. Veja como é fácil de preparar a deliciosa criação brasileira. Use uma panela pequena de alumínio, fundo grosso. Despeje nela o leite condensado, a manteiga e o chocolate. Ligue o fogo, chama baixa, e comece a mexer até aparecer o fundo da panela. Depois de dois minutos agregue as bolachas grosseiramente picadas e volte a mexer por um minuto. Despeje a mistura num pirex untado com manteiga, alise bem e espere amornar. Corte em quadrados e passe em açúcar de confeiteiro. Está pronta a delícia. 
 
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Errei. O nome do chef francês falecido no dia 20 de janeiro é Paul Bocuse e não Alain Ducasse, conforme citado na coluna de domingo passado. Desculpem a minha falha.

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