Receita de Ano Novo

Não poderia finalizar o ano a não ser com o poema de nosso grande Carlos Drummond de Andrade, que faz cair por terra todas as simpatias já imaginadas; mesmo assim, resisto com as lentilhas.

31/12/2017 | Tempo de leitura: 4 min

Não poderia finalizar o ano a não ser com o poema de nosso grande Carlos Drummond de Andrade, que faz cair por terra todas as simpatias já imaginadas; mesmo assim, resisto com as lentilhas
Não poderia finalizar o ano a não ser com o poema de nosso grande Carlos Drummond de Andrade, que faz cair por terra todas as simpatias já imaginadas; mesmo assim, resisto com as lentilhas
“Para você ganhar belíssimo Ano Novo/cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,/Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido/(mal vivido talvez ou sem sentido)/para você ganhar um ano/não apenas pintado de novo, remendado às carreiras/mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; /novo at é no coração das coisas menos percebidas/(a começar pelo seu interior) / novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, /mas com ele se come, se passeia,/se ama, se compreende, se trabalha, /voc ê não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, /n ão precisa expedir nem receber mensagens /(planta recebe mensagens?/passa telegramas?) //N ão precisa /fazer lista de boas intenções/para arquivá-las na gaveta. /N ão precisa chorar arrependido /pelas besteiras consumadas /nem parvamente acreditar/que por decreto de esperança /a partir de janeiro as coisas mudem/e seja tudo claridade, recompensa, /justi ça entre os homens e as nações, /liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, /direitos respeitados, começando /pelo direito augusto de viver. //Para ganhar um Ano Novo/que mereça este nome, /voc ê, meu caro, tem de merecê-lo, /tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, /Mas tente, experimente, consciente./É dentro de você que o Ano Novo/cochila e espera desde sempre”
 
Então, está tudo dito. Mesmo assim, com certeza alguém já providenciou cacho de uvas para ir engolindo bago a bago enquanto soam as doze últimas badaladas do ano. Ou prepara pernil ou lombo de porco, bicho que integra nove entre dez ceias de Réveillon. Quem sabe reuniu em potes bonitos nozes e castanhas, alimentos que no ritual das simpatias dizem trazer sorte também? E as romãs, lindas frutas que permeiam o imaginário desde os gregos? Mastigar treze sementes rubras e depois guardá-las na carteira garantem dinheiro o ano inteiro: será? sem trabalhar? e por que treze, se é tido por número aziago?! Não é fácil responder. Mas vale tudo na tentativa de garantir um feliz ano novo.
 
A essas superstições, às quais muitos se agarram, juntam-se as lentilhas, alimento milenar, presente em antigos textos gregos, latinos, árabes. Com grande valor nutritivo, por nome científico Lens esculenta, sua família é a das Leguminosas. De origem asiática, depois espalhada pelo mundo, é uma pequena planta de 30 cm de altura, que produz uma vez ao ano. Suas flores são pequeninas, brancas ou azul-pálido. O fruto é um legume curto, largo e achatado, contendo duas sementes de cor castanha ou avermelhada. São essas sementes as lentilhas, de alto valor nutritivo, ricas em proteínas e amido. A sua forma, arredondada nos bordos e convexa nas duas faces achatadas, foi o que fez chamar-se lente ao instrumento ótico. 
 
Este grão está presente em conhecida passagem bíblica. Jacó, aproveitando-se da fraqueza e fome de seu irmão Esaú, que chegava do deserto, negocia com ele os direitos de primogenitura trocando-os por um prato de fumegante ensopado. Só quem já sentiu a dor da fome pode entender o que seja essa renúncia de Esaú. Mas, julgamentos morais à parte, o tal prato permaneceu na história tanto quanto os personagens que o tornaram famoso. E virou até metáfora de coisa reles. Dia desses, numa série da Netflix a que estou assistindo, um cara falou ao outro, de forma muito ríspida: “Não me vendo por um prato de lentilhas!” E saiu, batendo a porta.
 
Como seria esta sopa que Jacó tinha acabado de preparar do lado de fora de sua tenda? Do gosto não sabemos, mas sobre a cor nos informa o Genesis que era vermelha. Não encontrei lentilhas vermelhas para preparar a receita deste domingo. Usei as tradicionais, amarronzadas. Mas se alguém se interessar, não é difícil encontrar as outras. Comer pelo menos uma colher de lentilhas na virada do ano traz sorte para o bolso que não ficará vazio durante o ano. Quem disse? Os imigrantes italianos que trouxeram o costume para o Brasil no começo do século passado. 
 
Quer experimentar? Faça assim. Lave uma xícara de lentilhas, escorra, deixe de molho por meia hora. Enquanto isso, pele dois tomates pequenos, retire as sementes, corte em cubinhos. Raspe uma cenoura média e corte em pedacinhos. Descasque e pique os dentes de alho. Limpe a parte branca do salsão e corte em rodelas finas. Pique as folhas de hortelã. Retire as folhinhas de um ramo de tomilho. 
 
Leve ao fogo uma panela com o azeite e deixe aquecer. Junte a cebola, frite até ficar transparente, reúna o alho. Acrescente as lentilhas escorridas. Em seguida os pedaços de tomate e cenoura. E as rodelas de salsão. Junte a água e deixe cozinhar até que fiquem macias. Então salgue, apimente se quiser, junte o imprescindível cominho, que faz toda a diferença nesse prato. Deixe reduzir o caldo, coloque numa sopeira e na hora de servir (pode ser quente ou fria) acrescente o suco de limão e as folhas picadas de hortelã. Receba o Ano Novo com o sabor acentuado desse ensopado, almejando o melhor para si e para todos. 

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.