COLUNISTA

O berço à sombra da cruz

Por Hugo Evandro Silveira |
| Tempo de leitura: 4 min
Pastor Titular - Igreja Batista do Estoril

A Profecia que Revelou o Verdadeiro Natal

Baseado na leitura bíblica de Lucas 2.28-35

No silêncio solene do Templo um ancião toma nos braços um bebê de quarenta dias. A cena parece rotineira dentro da liturgia de Jerusalém, mas marca um ponto decisivo na história da redenção. Simeão, representante do remanescente fiel - aquilo que Arthur Pink descreve como os eleitos preservados pela mão soberana de Deus -, entoa o Nunc Dimittis. Suas palavras não apenas unem Antigo e Novo Testamento, mas revelam que a sombra da cruz já se projeta sobre a madeira do berço.

No contexto histórico, a fé em Israel se encontrava sufocada pelo legalismo farisaico e pelo jogo político dos saduceus. Vivia-se um "jejum profético" prolongado. Ainda assim, o Espírito Santo não havia abandonado a aliança. Simeão aguardava a "consolação de Israel" com a convicção de que a esperança bíblica não é desejo vago, mas postura vigilante enraizada na fidelidade de Deus às suas promessas. Quando afirma: "Os meus olhos já viram a tua salvação", Simeão declara que a promessa deixou de ser abstração e tornou-se carne. O Natal é a concretização histórica do pacto da graça. Cristo surge como chave hermenêutica das Escrituras: o segundo Adão que obedece onde o primeiro fracassou e triunfa sobre a morte; o verdadeiro sacerdote e ao mesmo tempo o sacrifício; o rei messiânico que ocupa de modo definitivo o trono de Davi. Simeão pode morrer em paz não porque sua biografia tenha sido isenta de sofrimento, mas porque a soberania de Deus iria transformar a morte em vida por meio d'Aquele que repousava em seus braços.

O cântico de Simeão não se limita a Israel. Ele rompe fronteiras ao declarar que o menino é "luz para revelação aos gentios". Desenha-se aqui a universalidade da graça que alcança os improváveis. Como Paulo expõe em Efésios 2, a humanidade se encontra morta em delitos e pecados, afastada da comunidade da aliança. A encarnação não é gesto simbólico, mas invasão de Deus em território inimigo para resgatar seu povo, judeus e gentios, derrubando o muro da hostilidade. A boa-nova não se reduz a aperfeiçoamento moral: proclama libertação para cativos e recuperação da visão para cegos espirituais. Se isso não é evangelho, nada mais o é.

A profecia porém assume tom mais sombrio. Simeão dirige-se a Maria e anuncia: "Este menino está destinado à queda e à elevação de muitos". O evangelho se apresenta como escândalo antes de consolo. Cristo não é figura neutra na história. É a pedra angular para os eleitos, mas torna-se pedra de tropeço para os soberbos. O Natal introduz uma crise inevitável. Para alguns essa crise resulta em queda. A luz de Cristo desnuda a profundidade da depravação humana. Os que amam as trevas percebem-no como "cheiro de morte para morte". Sua presença desconstrói a autoconfiança religiosa e desmascara o orgulho humanista. Para outros a mesma luz significa surgimento e vida. Para os que creem Ele é ressurreição. Assim como chamou Lázaro para fora da tumba, chama pecadores mortos espiritualmente para a nova existência. A rejeição cultural ao evangelho, portanto, não deve surpreender a igreja. Simeão já havia anunciado que o Messias seria "sinal de contradição", alvo de oposição. Se o mundo rejeitou a Luz, rejeitará também seus reflexos na vida dos discípulos ao longo de toda história.

Por fim Simeão volta-se à mãe e declara: "Quanto a você, uma espada atravessará a sua alma". Nesse oráculo se concentra a teologia da cruz no coração do Natal. Maria não é apresentada como corredentora, mas como discípula que experimenta o custo do seguimento. A espada que rasga sua alma consiste em contemplar o Filho de Deus tornar-se no "homem de dores", ferido por causa das nossas iniquidades. O berço de Belém não pode ser separado da cruz do Gólgota. A madeira da manjedoura antecipa o madeiro do Calvário. A alegria do nascimento será marcada pelo horror da morte expiatória. A luz resplandece nas trevas, mas o preço para que essa luz se acenda é o sangue do Cordeiro. O evangelho segundo Simeão recorda que não há Natal sem a Sexta-Feira da cruz, nem alegria cristã sem arrependimento. A proclamação de Cristo provoca rejeição e adoração, endurece alguns e quebra o coração de outros. Neste tempo do Advento a igreja é chamada não apenas a admirar o menino no colo de Maria, mas a confiar no Salvador identificado por Simeão e a viver sob a salvação preparada a todos os que creem.

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