OPINIÃO

A necropolítica e a licença para matar

Por Zarcillo Barbosa | O autor é jornalista
| Tempo de leitura: 3 min

A imagem de dezenas de cadáveres enfileirados na praça pública, mostra a dimensão da guerra deflagrada na mais letal ação policial do país. 
Depois de ter acusado o governo federal de não prestar apoio no combate ao crime organizado, o governador do Rio Cláudio Castro (PL) resolveu se entender com o ministro Ricardo Lewandowski, da Justiça, para enfrentar a crise na segurança pública, “por determinação do presidente Lula”.

No Planalto, ao tomar posse na Secretaria-Geral da Presidência da República, Guilherme Boulos (Psol-SP) pediu um minuto de silêncio pelos mortos na megaoperação, depois de duras críticas à Polícia. O Congresso Nacional também decidiu embarcar nesse evento macabro. Davi Alcolumbre (União-AP) marcou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), para apurar a estrutura e funcionamento do crime organizado. O curioso é que as matérias relacionadas ao item segurança pública, tramitam devagar no Senado. Muitas proposições aguardam na gaveta, há anos, pareceres das comissões técnicas.

O presidente Lula sancionou a proposta do senador Sérgio Moro (União-PR), com penas mais rígidas para os chefões do crime organizado. O ex-juiz que condenou e mandou prender Lula também amplia, no seu trabalho, a proteção de autoridades e servidores públicos envolvidos no combate à marginalidade. Sem essas providências “vamos perder a guerra” – justificou. 

Esse palanque eleitoral montado em cima de uma tragédia que horroriza a opinião pública mundial, enquadra-se com perfeição no conceito filosófico de “necropolítica”. O Estado controla não apenas quem vive ou morre, mas a forma como se vive e como se morre. Quem está no poder, tem apenas a missão de comunicar aos cidadãos de bem, suas ações de “violência consentida”. O controle político imposto às populações periféricas, condena os indivíduos a uma linha de existência precária e indigna que transita entre a vida e a morte. As pessoas negras estão comumente ligadas à criminalidade, numa proporção de 78%, segundo as estatísticas do IBGE. São as que morrem, na maioria, em atos de violência dos agentes de segurança.

O Governador Cláudio Castro, do Rio, ainda inaugura uma retórica que substitui a segurança pública pela lógica da guerrilha urbana, ao chamar os mortos de “narcotraficantes”. Uma manobra política simbólica que transforma o criminoso em inimigo absoluto e o Estado em autoridade soberana sobre a vida e a morte. Deve ter sido influência do presidente Donald Trump, que na sua guerra particular diverte-se ao pulverizar barquinhos no Caribe, navegados por supostos traficantes de narcóticos.

Na necropolítica a morte é usada como instrumento de poder. Com amplo apoio popular, é uma forma de combate que elimina qualquer possibilidade de direito. A destruição e morte televisadas revestemse de legitimidade moral. O narcoterrorista é um ser fora da lei, cuja eliminação é um ato de heroísmo. 

No imaginário da sociedade brasileira existe uma “bandeira da ordem”. Tudo o que se faz para melhorar condutas, defender valores morais e a tradição, conta com grande dose de aprovação popular. Como James Bond, o policial tem “licença para matar” em prol de um discurso de ordem.

A teoria de Achille Mbembe, filósofo camaronês autor do conceito “necropolítica”, define o poder soberano como aquele que decide não só o que deve viver e o que deve morrer, como também o que pode ser chorado. Como disse o governador carioca, “De vítimas, só tivemos os quatro guerreiros que deram a vida para salvar a população”.

O agravante dessa mortandade no morro carioca é o discurso eleitoral que dele deriva. Ao validar uma política de segurança baseada na violência, reforça estereótipos, segregações e extermínio de determinados grupos, com seus culpados e inocentes.

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