OPINIÃO

A Professora, as Fadas e as Deusas no Reino do Poder

Por Tatiana Bianconcini Teixeira Mendes | Formada em Comunicação Social com especialização em cinema/FAAP
| Tempo de leitura: 12 min

Como descrever Mariza Bianconcini Teixeira Mendes, sendo sua filha? Com toda a ética e etiqueta que aprendi com ela, em primeiro lugar preciso me libertar da sensação de cabotinismo ao dizer que ela foi a pessoa mais inteligente que eu já vi andar sobre esta nossa Terra redonda. Esqueçam que é uma filha falando, os que tiveram o privilégio de conhecê-la bem sabem que eu não estou exagerando ou misturando sentimentos à minha fala, Mariza foi uma pessoa para muito além do conceito de brilhante. E dona de uma personalidade rara, que unia elegância a franqueza absoluta, coragem a extremo cuidado, honestidade e generosidade a um senso de justiça implacável. E eu tive o privilégio, com toda dor e delícia que veio junto disso, de ser a filha dela. Responsabilidade, só digo isso. Que responsabilidade esse legado deixa...

Mariza nasceu na Fazenda Graminha, dos Irmãos Bianconcini, em Iacanga. Filha de uma professora que, como mandava a regra da época, abandonou o trabalho após se casar, e de um filho de imigrantes italianos sem escolaridade alguma, mas muito bom com números e alfabetizado em casa. Apesar de não ter estudos, ele prometeu que a todos seus cinco filhos isso jamais faltaria. Mariza e sua irmã mais velha correram livres pelos campos da Fazenda Graminha, com seus irmãos e primos, até onde a pequena escola rural permitiu que não lhes faltassem estudos. E, aos cerca de 10 ou 11 anos, foram arrebatadas dessa liberdade, para prosseguirem os estudos no colégio interno, em Bauru, o Colégio São José, único colégio para meninas em toda a região na época.

Ali, apesar do carinho das freiras claretianas, que depois fundaram a FAFIL (Faculdade de Filosofia e Letras, atual Unisagrado), onde Mariza veio depois a se formar em Letras Neolatinas, a pequena menina, que outrora corria livre, se sentiu aprisionada. E a assustava a frase "Deus me vê", que era espalhada em placas distribuídas por todas as dependências do internato. Mariza se interessava por teologia, queria entender o significado de tudo. O Deus Onipresente, Onisciente e Onipotente, que a frase pretendia demonstrar, também parecia-lhe um algoz de seus pensamentos mais audaciosos e livres.

Enquanto as duas filhas mais velhas cumpriam sua necessária estada no internato, seu pai se empenhou em construir uma casa em Bauru e para cá se mudar, com o firme objetivo de permitir que seus cinco filhos pudessem ter todo o acesso que ele não teve aos estudos. Isso é assunto para outro dia, mas o velho Maurilio, saiba-se, era um fazendeiro getulista, idiossincrasia rara à sua época. E, graças a essa sua obstinação, foi possível que, assim que completaram o antigo curso ginasial no internato, as meninas Diva e Mariza pudessem voltar a morar com os pais e frequentarem o famoso Instituto de Educação Ernesto Monte, escola pública e laica, onde Mariza se formou no antigo Clássico.

Ela amava latim e foi assim que acabou retornando para o seio das freiras claretianas para fazer o hoje antigo curso de graduação em Letras Neolatinas, que dava proficiência em Português, Espanhol, Francês, Italiano e Latim. Aos 22 anos estava formada e, apesar de ter despontado como modelo de alta costura e etiqueta nos meios sociais da época na cidade e ter também participado do movimento estudantil nos primeiros anos da ditadura, militando na UEE, foi no magistério que escolheu se colocar firmemente. Prestou seu primeiro concurso para professora de francês na rede pública, pois das línguas que estudou na faculdade, mais o inglês que cursou no Instituto Yazigi, francês era sua língua preferida.

Quando eu nasci, em 1969, ela era professora de francês. Ainda jovem, aos 28 anos, já era uma professora que marcava a vida de todos seus alunos. Ela tinha gravador de rolo para treinar pronúncia, gravava os alunos e os fazia ouvirem-se. Ela tinha vitrola portátil e muitos discos, que levava para a sala de aula. Discos de métodos, como uma coleção de EPs de papel, que ela não deixava ninguém exceto ela colocar a mão, mas também discos de música e literatura. Eu, pequenina, era fascinada pelos dois discos com O Pequeno Príncipe, o francês e o brasileiro, que ela usava para comparar.

Na versão brasileira, a voz de Saint-Exupéry era a voz de Paulo Autran. Paulo Autran que, quando veio a Bauru com a peça Liberdade, Liberdade, foi convidado por meu pai, Fernando, para participar de uma serenata para sua namorada Mariza, junto com um grupo de violonistas que faziam serenatas e se chamava Os Capas Pretas. Paulo Autran declamou sonetos ao som dos acordes dos Capas Pretas sob a janela dela e, certamente, foi ali que seu coração foi definitivamente arrebatado.

E, com essa paixão que ela dedicava a tudo que lhe era mais caro, Mariza arrebatou também os corações de muitos jovens alunos, que passaram a ter o Francês como a língua mais amada, depois da nossa língua-mãe. As meninas se inspiravam nela e desejavam ser como ela. Alguns, apesar da pequena diferença geracional, se tornaram amigos íntimos, como o jovem Mauro Rasi, filho de Dona Pérola, que graças à jovem professora Mariza conseguiu ler Sartre e Simone de Beauvoir em Francês e fez disso o motor para se tornar o dramaturgo de sucesso que se tornou. Eu me lembro dele, quando eu era criança, regressando à terra natal algumas vezes e vindo nos visitar para compartilhar os sucessos que estava alcançando. Décadas mais tarde, homenageou Mariza e outras duas professoras que marcaram sua formação, Dayse e Jussemy, com a peça As Tias.

Eu tinha cerca de cinco anos quando o Francês saiu da grade curricular. Era pra impedir os jovens de lerem os existencialistas, os estruturalistas, os pós-estruturalistas, dizem. Uma decisão tomada no auge da ditadura militar. Sem se abalar, já com dois filhos e esperando o terceiro, Mariza estudou, estudou, estudou. E passou no novo concurso como professora de Português. Ao ensino da nossa língua-mãe, então algo muito rígido e baseado em decorar regras de gramática, ela levou todo o entusiasmo e experimento que usara até então para ensinar francês. Ela dizia: "só se aprende português lendo com prazer, do mesmo modo que se aprende uma língua estrangeira!" E em vez de pedir que os alunos abrissem a Gramática em sala de aula, ela perguntava o que eles gostavam de ler. Revistas? Jornais? Fotonovelas? Gibis? E pedia que levassem suas leituras para a sala de aula.

Anos mais tarde, fui aluna dela e uma das coisas de que nunca me esqueço é que ela ensinava as regras da língua na linguagem de balões, dos gibis e fotonovelas! A altura e ordem dos balões, seus formatos - gritando, pensando, sussurrando, etc. Outra coisa de que nunca me esqueço é que ela dedicava um semestre a ensinar "ponto de vista". Ela apresentava uma versão sintética da história de Chapeuzinho Vermelho e, em seguida, pedia: "Contem agora essa mesma história, como se vocês fossem o lobo." Imediatamente, todos contavam a mesmíssima história, mas em primeira pessoa e dizendo: "eu sou o lobo". Ela lia alguns dos exercícios e começava a questionar: "Mas vocês acham que o lobo se acha mau? Têm certeza? É este o ponto de vista do lobo? Ou será que o lobo não se vê apenas como um animal faminto, que percebe que uma criança, a quem não falta nada, está passeando por seu território, com uma cesta cheia de doces?" Nascia ali a futura semioticista greimasiana que ela veio a se tornar, décadas depois. Mas nascia também toda uma geração de jovens que compreendiam que o ponto de vista sempre muda a narrativa.

Nessa época, a censura era cruel, obrigava artistas como Chico Buarque a fazerem mágica em seus versos para obterem aprovação para publicar suas músicas. Nesse tenso ambiente para a criação artística, um nicho surgiu, que escapava despercebido aos olhos dos censores, era a então incipiente literatura infanto-juvenil brasileira. Essa verdadeira revolução literária, às sombras dos censores, foi capitaneada por Caio Graco Prado, à frente da Editora Brasiliense, através da coleção Jovens do Mundo Todo. Outras editoras, com muito mais recursos que a de Caio Graco, se somaram, como a Ática e Melhoramentos, gigantes do setor de livros didáticos.

Sempre que podia, Mariza, ao adotar livros brasileiros recém-lançados em sala de aula, além de incentivar os alunos a produzirem material pseudojornalísticos sobre os livros - revistas que contavam o conteúdo dos livros sob forma de notícias e fotonovelas -, incentivava-os a escreverem cartas para o autor ou autora. Cartas sem regras, cartas sinceras, com perguntas, elogios ou críticas. Apenas cartas, ou o gênero missivo ou epistolar,  um dos mais belos gêneros literários do mundo! Mariza juntava todas as cartas, escrevia uma de próprio punho, explicando a iniciativa e enviava para as editoras. Para a surpresa dos alunos, os autores e autoras começaram a responder, emocionados, a todas suas cartas. Assim nasceu uma grande ideia na mente sempre inquieta da Mariza: promover encontros entre autores e alunos.

Havia uma escritora, autora de cerca de três ou quatro títulos de sucesso da Jovens do Mundo Todo, Tereza Noronha, que era a mais empolgada com a troca de correspondência com seus jovens leitores. Em uma carta, contou à minha mãe que tinha uma familiar em Bauru e gostaria de vir à cidade. Mariza conversou com colegas, com livrarias. E, em pouco tempo, professores de várias escolas públicas adotaram simultaneamente os livros de Tereza e ela veio à cidade e se encontrou não apenas com os alunos de Mariza, mas com alunos de várias escolas da rede pública. O sucesso foi tão grande que Mariza procurou a Tilibra, que além da famosa fábrica de cadernos, mantinha a mais tradicional grande livraria da cidade. E a Tilibra deu carta branca a ela para promover os encontros que desejasse promover, com o compromisso de custear passagens e hospedagens dos autores.

Assim, seguiram-se anos de grandes encontros, que culminaram na criação da Bienal de Literatura Infanto-Juvenil, em parceria com o SESC, e com o surgimento de um novo movimento, que se replicou e se espalhou pelo Brasil todo, promovendo a aproximação dialética entre autores e o público infanto-juvenil. Por ter criado isso, Mariza passou a ser convidada por todas editoras para falar do processo, tornou-se membro do júri do Prêmio Jabuti Infanto-Juvenil, participou da criação do CELIJU, grupo que reunia autores, editores e professores, e acabou convidada pela maior das grandes editoras de didáticos, a Editora do Brasil, a criar sua própria coleção, a Texto Imagem, no formato paradidático.

A Texto Imagem tinha dois grandes princípios que revolucionaram o mercado editorial da época. Equiparou autor e ilustrador como coautores e, pela primeira vez, ilustradores passaram a assinar contratos para receber direitos autorais também. E o papel dela, de editora e autora do material paradidático que acompanhava o livro, propondo atividades para alunos e professores, também foi colocado como um trabalho de criação e, portanto, contratado da mesma forma pela editora. Anos depois, outras editoras também adotaram essa prática.

Mas Mariza não parava nunca. Nunquinha. Em paralelo a isso tudo, ela seguia dando aulas, atuava arduamente na APEOESP, à frente do movimento sindical que exigia não só garantias salariais, mas também novas diretrizes pedagógicas, formação continuada e atualização acadêmica para todos os professores da rede pública paulista. E não era só isso... Ela coordenou por anos o vestibular da ITE, introduzindo, décadas atrás o conceito de temas transversais, que hoje é utilizado no ENEM e em tantos outros concursos vestibulares. Ela criava a prova de Português, mas trazia todos os outros professores autores, até mesmo os de Matemática ou Física, a criarem questões com temas que dialogavam com a Redação, a prova de História ou Inglês.

Mas não dava para parar por aí, então Mariza foi fazer seu mestrado em Literatura na UNESP, estudando as funções femininas nos Contos de Perrault. Ou, como era pra ter sido o título do livro com sua dissertação, mas a Edunesp achou ousada demais a ironia: "Eram as fadas deusas?", numa irônica citação a "Eram os deuses astronautas?" Como a editora achou ousado demais, ela recorreu a parafrasear um autor que amava, Proust, e, assim, surgiu o título Em Busca dos Contos Perdidos.

Aposentada da carreira na rede pública, ela iniciou o doutorado em Linguística e Semiótica Francesa, mas também prestou outro concurso, pois não conseguia ficar longe dos jovens alunos. E tornou-se professora de Literatura do CTI da Unesp/Bauru. Depois de rastrear a origem das figuras de fadas e bruxas até as sociedades pré-históricas e matriarcais, onde as divindades eram femininas, Mariza escolheu como objeto de sua tese o Deus patriarca, que marca a passagem da Pré-História para a História, Javé, e que se tornou a matriz de todo o nosso pensamento atual e base das três maiores religiões do mundo: judaísmo, cristianismo e islamismo. Assim nasceu (Mariza e seu amor por paráfrases irônicas!) No Princípio Era o Poder: uma análise semiótica das paixões no discurso do Antigo Testamento. A tese foi posteriormente publicada pela Editora Annablume, com apoio da Fapesp, e causou furor e discussões acaloradas, às quais Mariza fez questão de dar molde de debates, principalmente com pastores evangélicos.

Mariza era agnóstica, mas sempre amou Teologia, Filosofia, Mitologias. Minhas últimas palavras para ela foram para que ela não tivesse medo pois, fosse qual fosse o que a esperava após a vida, ela podia ir tranquila e sem temor algum, pois foi uma pessoa perfeita: corajosa, ética, honesta e justa. Portanto, se nada houver, ela vai tranquila com o modo como existiu. E, se algo houver, ela segue igualmente tranquila pois o modo como existiu a torna uma pessoa com todos os predicados para ascender a um "plano superior". Durante o seu velório, que foi poucas horas antes deste momento em que escrevo estas palavras, entre muitas homenagens e bons acasos, coisas que sempre ocorreram com ela, um ex-colega de APEOESP que hoje é diácono, um tipo de "padre laico", chegou lá para fazer uma oração para outra família. Descobriu assim que Mariza tinha partido. E pediu à família e amigos de Mariza se poderia fazer a oração para ela. E foi assim que Mariza teve a mais bela última oração que alguém poderia ter tido na vida. Feita por alguém que conhecia toda a sua trajetória, no sindicalismo, nas salas de aula, nas obras que escreveu e na vida que viveu. Disse que uma pessoa não precisa de fé para se tornar uma "santa", alguém que intercede junto ao Divino, mas de ações e motivações reais, como ela sempre teve. E que agora ela poderia interceder junto a Deus, com sua personalidade de negociadora e invencíveis argumentos, pela Educação em todo o Brasil e no mundo. Eu não achei exagero. Perdoem-me o cabotinismo. Ela é minha mãe.

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