Para entender qualquer comportamento humano, diz o neurocientista e primatólogo americano Robert Sapolsky, 68 anos, é preciso entender toda a cadeia de fatores que o influenciaram. Ou seja, tem que levar em conta o que aconteceu horas antes, meses antes e mesmo décadas, séculos e milênios antes, quando a pessoa ainda estava na barriga de sua mãe ou quando seus ancestrais eram moldados pela história. Em nenhum ponto dessa trama interminável de causas seria possível falar em livre-arbítrio.
PERGUNTA - Boa parte da sua argumentação neste livro já estava presente na sua obra anterior, chamada "Comporte-se". Por que decidiu voltar ao tema?
ROBERT SAPOLSKY - De fato, quando escrevi "Comporte-se", achei que tinha escrito "Determinados" ao mesmo tempo. Só que aí eu dei muitas palestras e passava uma hora com a plateia dizendo: "Nosso comportamento sempre deriva de fatores que nos afetaram um segundo atrás, um minuto atrás, meses atrás" e tudo o mais. E invariavelmente, na hora das perguntas, alguém dizia: "Se tudo isso é mesmo verdade, esses dados sugerem que nós não temos lá muito livre-arbítrio". E aí a minha reação era... [faz cara de inconformado] Puxa vida. OK, eu vou ter de ser menos sutil e escrever um livro inteiro sobre isso porque, afinal de contas, não existe livre-arbítrio. Tipo, nenhum, nenhum, nenhum.
P - Uma coisa curiosa do livro é o fato de que pessoas como neurocientistas e filósofos, que não deveriam ter apego à ideia de livre-arbítrio, acabam defendendo o conceito.
RS - No caso dos neurocientistas, a maioria deles nem pensa no assunto porque eles só conseguem se concentrar no estudo de uma única enzima e de uma única parte do cérebro que tem sido o centro do universo deles durante décadas. Já no caso dos filósofos profissionais, as pesquisas sugerem que entre 90% e 95% se identificam como compatibilistas. Ou seja, eles afirmam: "É, o mundo é feito de átomos, assim como nós e tal, mas de algum jeito aí ainda existe espaço para o livre-arbítrio". E, quando você olha com cuidado para os argumentos deles, sempre, em algum lugar lá dentro, eles enfiam algum elemento mágico para explicar isso. Mas não: o Universo, o cérebro, os neurônios não funcionam desse jeito. Sobre a razão para tanta resistência, é porque essa ideia é perturbadora demais. A primeira reação é uma espécie de alarme cívico. "Ah, que ótimo, vamos deixar os assassinos soltos nas ruas" ou algo assim, o que é bobagem. É um tipo de alarme religioso.
P - O sr. diz que até primatas parecem ter intuição de que o livre-arbítrio existe.
RS - Com certeza. É algo que dá atalho fácil e conveniente para entender os outros. Nessa lógica, indivíduos, como outros chimpanzés e outras pessoas, escolhem o que fazer. Então, como eu faço para interagir com esse indivíduo que não passa de um babaca? Eu o trato como se ele de fato quisesse fazer comigo o que costuma fazer, como se ele fosse um agente livre. É um atalho. Poucos seres humanos estão dispostos a sentar e dizer: "Espere aí. Vamos tentar entender como aquela pessoa se tornou quem é e se ela realmente tinha algum controle sobre isso". Certamente não dá para esperar que um chimpanzé ou babuíno reflitam sobre isso.
P - Vemos outros pensadores usando elementos da ciência que não têm nada a ver diretamente com o comportamento humano, como a mecânica quântica e a teoria do caos, como possíveis bases para o livre-arbítrio.
RS - Se você não examina detidamente esse tipo de coisa, é fácil ficar com a impressão de que é possível produzir livre-arbítrio desse jeito, com coisas novas surgindo a partir do nada. E não é possível. As coisas não se libertam das suas propriedades físicas só porque um número muito grande delas está interagindo ao mesmo tempo. Ideias como a teoria do caos e a complexidade emergente são tão bonitas, tão interessantes, permitem explicar fenômenos tão complicados como a otimização da trajetória das formigas ou a organização dos neurônios no cérebro, que é tentador usá-las para dizer: é assim que nos transformamos em agentes de nossas próprias escolhas. Claro que isso é muito melhor do que dizer que o livre-arbítrio existe porque a gente é "capaz de senti-lo", ou porque seria deprimente demais dizer que ele não existe.
P - Em algum nível, tomar uma decisão consciente seria algo 'mais livre' do que reações inconscientes?
RS - A consciência é irrelevante para o debate sobre o livre-arbítrio. Algumas das coisas que fazemos acontecem por meio de canais conscientes e outras por canais inconscientes. Com certeza é fácil perceber a falta de livre-arbítrio no primeiro caso, e só é preciso um pouco mais de esforço para perceber a mesma coisa no segundo. Digamos que você tem uma intenção e está consciente dela. Você tem uma ideia bastante boa do que provavelmente vai acontecer se você seguir o que essa intenção dita e tem outras alternativas disponíveis. E, para muita gente, isso resolve a parada: trata-se de livre-arbítrio. Mas se você apenas analisar o que acontece quando alguém formula uma intenção de agir, está deixando de lado 99% do que é relevante. Porque a verdadeira questão é: como você se tornou o tipo de pessoa que formularia aquela intenção naquele momento. E essa é a história completa: não a de quem você é, mas a de como você se tornou quem você é. E isso tem a ver com o que aconteceu na sua infância, no útero da sua mãe, na cultura dos seus ancestrais ao longo de centenas de anos e assim por diante.