Potência de amor e paz, esse Brasil faz coisas que ninguém imagina que faz". Quando escreveu esta frase, Miguel Gustavo, o jornalista que compôs o hino oficial para as comemorações do sesquicentenário da independência, por certo tinha em mente um elogio à nossa nação, já que o engenhoso povo brasileiro é conhecido por sua criatividade e habilidade de encontrar soluções espertas para problemas difíceis.
No entanto, para mim o verso acabou se tornando, na verdade, uma confissão, ainda que por ato falho, de uma vicissitude tupiniquim: o Brasil é capaz de produzir bobagens nos mais inusitados momentos, com as mais inusitadas origens e pelas mais inusitadas causas.
A engenhosidade para trapalhadas se constata facilmente com o estudo da história do Brasil, da vida privada à pública, e por certo abrange - como não? - também as nossas instituições. Assim é que, no que toca à instituições, ninguém imagina, mas o Brasil faz, também, leis ruins --e o faz com uma morbidez interessantemente criativa.
Churchill não era brasileiro, mas acertou em cheio quando disse que leis são como salsichas: é melhor não ver como são feitas. Já o americano Henry Mencken, por sua vez, cravou: "Para todo problema complexo, existe uma resposta que é clara, simples e errada". No Brasil, muitas delas viram lei. E se não existe o problema, sem problema: a própria lei trata de criá-lo para ter o que resolver.
Do ponto de vista material (ou seja, do conteúdo), exemplos não faltam: são famosas leis tais como uma de Rio Claro, que proibia as pessoas de terem formigueiros em casa, uma de Porto Alegre, que obrigava grandes edifícios a expor uma obra de arte em local visível, ou uma do Rio Grande do Sul, que obrigava a inclusão de doce de leite nas merendas escolares. E o que dizer de leis instituindo feriados um tanto quanto esquisitos como o Dia do Escoteiro do Mar ou o Dia Municipal da Queda de Braço, este em Belo Horizonte?
Mas me interessa mais, aqui, expor engenhosidades de outra natureza: as estripulias legislativas quanto à forma, isto é, as leis com má técnica legislativa ou defeitos de legística. Legística é a ciência que estuda a elaboração das normas jurídicas, com foco especial na qualidade técnica e formal das leis.
Leis mal redigidas comprometem diretamente a segurança jurídica, pois dificultam a interpretação e a aplicação da norma pelos operadores do Direito. Quando a redação é ambígua, prolixa ou mal estruturada, são criadas lacunas e polissemias --o que enfraquece a autoridade da norma, causa insegurança entre os destinatários e pode gerar disputas judiciais desnecessárias.
Um caso comum de erro de legística é o uso de termos vagos ou contraditórios no mesmo dispositivo, bem como a ausência de uniformidade terminológica, o que compromete a coerência interna do texto legal. Do mesmo modo, leis que carecem de uma estrutura lógica, com artigos desorganizados ou sem conexão entre si, ou ainda com erros de ortografia ou manejo inadequado do vernáculo, violam princípios básicos da legística formal, como a clareza, a precisão e a harmonia textual.
É verdade que na maior parte das vezes as falhas na técnica legislativa se devem à inaptidão dos redatores. No entanto, também existem casos de má técnica proposital. Um exemplo interessante foi o do PLV nº 7/2021 (desestatização da Eletrobrás). Na minuta do projeto, o art. 1º, §1º, do PLV foi expandido com dezenas de exigências, virando um texto de uma página sem pontuação e apelidado, por isso mesmo, de "artigo à Saramago". A má técnica nesse dispositivo não foi por acaso: a ideia era limitar o poder de veto do Presidente da República, já que, no Brasil, só é possível vetar texto integral de dispositivo (artigo, parágrafo, inciso, etc).
Discute-se quanto à existência de vício de inconstitucionalidade nas leis baixadas com má técnica. Juristas como Roberta Simões do Nascimento e Carlos Roberto Alckmin Dutra admitem a modalidade. Elival da Silva Ramos fala na chamada inconstitucionalidade finalística, dizendo que nesta categoria "deve-se incluir toda sorte de contradição entre o ato legislativo e os fins que lhe forem assinalados pelas normas constitucionais", elencando como exemplo "a deficiente estruturação interna do ato legislativo, quer sob o aspecto formal, quer sob o aspecto de conteúdo, tornando-o inábil à consecução do fim (mediato) que lhe é inerente, no plano da segurança jurídica". Pode-se dizer que, seguindo essa corrente, leis que nascem sem legística devem morrem com legista.
Ninguém acredita, mas nesta potência de amor e paz são feitas, sim, leis ruins.
Cabe às instituições políticas zelar pela sua responsabilidade na elaboração de normas, e às instituições jurídicas, tais como as Procuradorias, o Ministério Público e o Judiciário, fazer o devido controle quando leis sem técnica prejudicam a integridade, a harmonia, a funcionalidade e a estabilidade do ordenamento.