Uma esperada revolução começa a ocupar os consultórios e hospitais de referência em cardiologia pelo mundo: o uso de ferramentas que contam com inteligência artificial (IA) para avaliar exames com mais precisão ou orientar procedimentos de tratamento.
As novidades, em geral, partem de processos já utilizados e bem estabelecidos na prática médica, mas que com as novas funcionalidades ajudam os profissionais de saúde a tomar decisões mais certeiras e embasadas.
Uma das ferramentas disponíveis recebeu, no começo do ano, o importante aval da Food And Drug Administration (FDA), a agência reguladora dos Estados Unidos, equivalente à Anvisa no Brasil.
O produto é um estetoscópio com capacidade de interpretar se os batimentos cardíacos estão fracos, avaliando tanto o som quanto a atividade elétrica do coração.
O item teve desenvolvimento acompanhado pela Mayo Clinic em parceria com uma empresa privada e chama-se Eko. Antes da chegada desse apetrecho, o time de pesquisadores da Mayo Clinic observava se era possível adaptar o corriqueiro exame de eletrocardiograma para o mesmo diagnóstico. E foi.
"Com esses modelos de IA é possível dar indicativos clínicos e colher informações que você não conseguiria normalmente. E esse é um diagnóstico muito importante porque atinge cerca de 2% da população, o que salta para 9% em pessoas acima de 60 anos", diz Paul Friedman, professor e presidente do departamento de medicina cardiovascular da Mayo Clinic, em Minnesota (EUA).
"Com o desenvolvimento, foi possível adicionar à análise um novo diagnóstico desconhecido do paciente ou do médico, que é justamente essa batida fraca do coração", completa.
Mortes reduzidas em 12%
No Reino Unido, o Sistema Nacional de Saúde (NHS) iniciou um programa piloto para incluir uma nova funcionalidade a exames de imagem. Com a nova análise, testada pela Universidade de Oxford, será possível prever em até uma década antes se aquele paciente em questão tem risco de sofrer um ataque cardíaco. A análise faz adaptações em tomografias, as chamadas angiotomografias coronarianas, para observar áreas não visíveis em regiões perivasculares, ao redor das artérias.
"Essas informações estão relacionadas à gordura que circunda os vasos e podem fornecer uma métrica muito precisa da inflamação das artérias do coração. Quanto mais inflamação tivermos, maior será o risco de um ataque cardíaco nos próximos anos", diz Charalambos Antoniades, professor da Universidade de Oxford e líder do grupo responsável por estudar o sistema em larga escala.
"Em seguida, usamos um algoritmo de IA complexo que integra essas informações com vários outros tipos de dados extraídos dos exames para fornecer o risco absoluto de um ataque cardíaco nos próximos 10 anos. Essa tecnologia realmente previu quase todos os ataques cardíacos que aconteceram mais de uma década após o exame."
Estima-se que, ao usar essa tecnologia, o NHS, diz o professor Antoniades, registrará 11% menos ataques cardíacos, 12% menos mortes, 4% menos novas insuficiências cardíacas e 4% menos derrames. A ferramenta, no estudo de Antoniades e que levou em conta 40 mil pacientes, mudou o tratamento de 45% dos participantes.
Outras doenças identificadas
Uma nova análise com o mesmo estetoscópio dá pistas de que esse tipo de inovação pode setornar útil para acessar países de baixa renda ou que tenham dificuldades em realizar exames. Publicado no periódico "Nature", o estudo levou em conta a saúde de 1.200 grávidas avaliadas na Nigéria.
Com ele, foi possível identificar duas vezes mais cardiomiopatias nessas pacientes, quando comparado com exames regulares feitos até agora. Esses diagnósticos poderiam ser difíceis de realizar porque os sintomas desse problema de saúde, diz Friedman, se confundem com outras queixas relacionadas à gravidez, como cansaço e palpitações.
É possível, inclusive, esperar que o sistema do estetoscópio seja treinado para identificar outras doenças. Desde que ele passe por testagens para esse novo trabalho.
"O Eko foi desenvolvido para gravar sinais do coração, como sons e (realizar) ecocardiogramas. Não foi pensado para identificar uma única doença. Há outros algoritmos que podem ser testados nele, mas é claro que tudo isso precisa ser estudado", afirma o médico.
Ferramentas ajudam a dar maior precisão
Marcos Queiroz, diretor de medicina diagnóstica, e Gilberto Szarf, coordenador da área de radiologia, ambos do Hospital Albert Einstein (SP), acompanham de perto essas inovações e dizem que o centro de saúde planeja dedicar-se a alguma funcionalidade semelhante em breve. "Tratar um paciente com insuficiência cardíaca, por exemplo, é muito caro. Trabalhar com a prevenção também faz sentido financeiramente. Isso sem contar todo o aspecto humano para aquele paciente", diz Szarf. "Essas ferramentas nos dão uma capacidade enorme de encontrar pessoas que precisam ser tratadas", completa. Na área do tratamento, o Brasil também estuda soluções. No Instituto do Coração (InCor), em São Paulo, a cirurgia de angioplastia com stents - pequenos dispositivos para desobstruir artérias - tem sido realizada com a ajuda de um modelo de IA cuja função é prever com alta precisão, ao receber informações de um cateter, onde é o melhor ponto para a aplicação do stent.