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'Afunilamento' do aquífero em Bauru é obstáculo a poços no Centro

Informação foi constatada pelo projeto Sacre, coordenado pelo pesquisador Ricardo Hirata, que falou com o JC na última quarta-feira

Por André Fleury Moraes | 08/06/2024 | Tempo de leitura: 8 min
da Redação

Viva Batalha/Divulgação

Trecho do Rio Batalha, em Bauru
Trecho do Rio Batalha, em Bauru

Ele trabalhou no Banco Mundial por 10 anos, foi hidrogeólogo sênior do Instituto Geológico São Paulo, hidrogeólogo residente do Cepis, órgão da Organização Mundial da Saúde no Peru, consultor da Unesco e da International Atomic Energy Agency (IAEA) e trabalhou ainda na Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS). Foi também professor visitante na University of Calgary, no Canadá, e na Universidad de Costa Rica.

Goste-se ou não, o currículo do pesquisador Ricardo Hirata, hoje professor titular do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP), diretor do Centro de Pesquisas de Água Subterrânea (Cepas-USP) e vice-presidente da Associação Brasileira de Águas Subterrâneas (Abas), não é pouca coisa.

Estuda, pesquisa e trabalha com águas subterrâneas desde nada menos do que 1984. E coordena o "Soluções Integradas Para Cidades Resilientes" (Sacre), projeto que, nas palavras do próprio Hirata, tem por objetivo criar soluções "que reduzam a vulnerabilidade no abastecimento em cidades e no campo e tratem águas contaminadas". É ciência pura.

Ricardo há dois anos pesquisa Bauru. O Sacre firmou um convênio em 2022 com o Departamento de Água e Esgoto (DAE) e está incumbido, ao lado de sua equipe, de elaborar uma verdadeira radiografia sobre o sistema de abastecimento do município, a bacia hidrográfica a que Bauru pertence e os aquíferos acima dos quais a cidade está situada.

Os dados preliminares do estudo foram divulgados na quarta-feira (5) na sala do presidente do DAE, Leandro Joaquim. Numa entrevista ao JC que se assemelha a uma aula cátedra, Hirata fala sobre crise hídrica e como Bauru deve se preparar a ela, poços de captação de água, estiagem e muito mais. A seguir, os principais trechos da conversa.

JC - O Sacre avaliou os aquíferos e houve a percepção de que o reservatório diminui na região abastecida pela lagoa de captação do rio Batalha. Isso impõe uma dificuldade natural à perfuração de poços nessas localidades. O aquífero está colapsando? O que o projeto pôde levantar?

Ricardo Hirata - Não chamaria de colapso, essa é uma definição muito forte. O que ocorre é que o nível do aquífero Guarani, que fornece 70% da água consumida por Bauru, cai à medida em que você capta recurso dele. A dúvida é saber até que ponto isso ocorre. Se ele reestabiliza, por exemplo, ou não.

Essa queda não é uma coisa natural. Se retirar água do aquífero o nível dele cai. O que acontece é que em Bauru, assim como em outras cidades, poços são perfurados sem muito entendimento sobre o aquífero. E essas fontes de captação são instaladas onde há demanda. A questão é que precisamos entender o aquífero, e é isso que o Sacre está fazendo.

Fora isso existem as condições geológicas que permeiam esses reservatórios. Isso envolve a formação deles, o ambiente a partir do qual eles foram sedimentados. O aquífero é uma "camada" no subsolo. O Guarani, assim como todos os outros, possui especificidades. Em Bauru não é diferente.

O que notamos é que a espessura do Guarani é muito boa nas regiões Norte, Leste e Sul da cidade. Mas quando se aproxima da região abastecida pelo Batalha, sobretudo no Centro, ele fica mais fino. Isso significa que o reservatório tem menos água. É uma infelicidade natural, já que o município surgiu a partir dessa região.

Pequenos usuários até podem abrir poços por ali, mas essa definitivamente não é uma saída para o DAE, já que a produção de água cai substancialmente.

JC
- O que fazer neste caso?

Ricardo Hirata - Há alternativas de adaptação, entre as quais melhorar a gestão dos poços. Você pode bombear menos [água] e distribuir melhor os poços, como construir um campo de poços fora da cidade. Neste caso, o DAE precisaria trazer água para a cidade, mas isso é muito mais barato do que captar de locais mais distantes.

Um ponto positivo neste caso seria a qualidade da água. Quando você retira água de rios é necessário tratá-la, o que envolve custos. O recurso oriundo de poços é água mineral, exige pouco ou nenhum tratamento. A questão é discutir quanto isso custa. Mas essa é uma opção.

JC - E com relação ao Batalha?

Ricardo Hirata - Esse é outro problema. O Batalha é um reservatório pequeno, assim como sua bacia hidrográfica. O mesmo vale à reservação do DAE, que rapidamente se esvai quando entra a estiagem. Claro que precisamos ter em mente que a lagoa [do Batalha] foi criada para uma outra Bauru, que já não existe mais. A cidade cresceu, afinal. Mas é uma realidade.

Algumas pessoas acham que a agricultura só usa água na irrigação, o que não existe com relação ao Batalha. O fato é que há culturas que exigem muita água, como cana e eucalipto, e outras que não necessitam. O que precisa fazer é analisar todas essas utilizações, ver as prioridades e avaliar se há água para todo mundo. Se houver, não há problemas.

JC - O DAE afirmou recentemente que pouco adianta tornar a lagoa um ou dois metros mais funda, já que isso traria reservação para apenas alguns dias e a estiagem se prolonga por muitos mais. Uma outra fonte de captação, ainda no Batalha, é possível?

Ricardo Hirata - Para cima, não, porque o rio vai ficando menor e a bacia, também. Mas na região mais abaixo do leito é possível, sim. Isso depende de um estudo que vai indicar o local mais adequado.

O Batalha é um rio que cresce em volume e vazão à medida que se aproxima da foz, onde a bacia é maior. Mas é preciso avaliar, por exemplo, se a qualidade de água é boa, se há contaminação. Há ainda a questão fundiária, sobre se será preciso indenizar alguém para trazer água de outras regiões. O que o Sacre faz é avaliar soluções pequenas, menores, para melhorar isso com o menor custo possível.

Existe um professor da Universidade de Waterloo, por exemplo, que trabalha com compensações, que é algo positivo. Por exemplo, se uma pessoa planta uma cultura que exige muita água, o poder público pode fazer um acordo para que outra coisa seja cultivada e, em contrapartida, compensa o prejuízo dele. De qualquer forma isso precisa ser justo.

JC - O sr. falou em compensação, mas isso talvez não seja a única frente. O Plano Diretor ou a Lei de Zoneamento são artifícios para se melhorar a questão hídrica?

Ricardo Hirata - Com certeza. A gente não pode pensar em água de forma isolada da cidade. Não é uma coisa independente. É um pouco complexo, mas precisamos ter uma gestão integrada de recursos hídricos. Isso inclui analisar o uso da terra, as atividades econômicas e sociais e a água. E fazer tudo isso funcionar.

JC - Em que pé está o levantamento?

Ricardo Hirata - Podemos dizer que estamos na metade. É um projeto de seis anos e estamos entrando no terceiro deles. No primeiro, coletamos todas as bases de dados possíveis - federais, estaduais e municipais. Reunimos tudo e, a partir daí, definimos a linha de trabalho.

A atenção se volta a aumentar a capacidade de água, tanto para o [aquífero] Guarani como para o [rio] Batalha, e também levantar o problema das contaminações. Temos rios e córregos contaminados no município e analisamos isso também.

Para se ter uma ideia, e isso não se restringe a Bauru, há presenças de contaminantes até uns 60 metros de perfuração. Especialmente nitrato, um contaminante muito comum.

Se o poço não for bem construído pode pegar essa área de contaminação, causada em grande parte pelos próprios problemas urbanos. Estamos estudando como tratar isso. É a parte física do projeto. Vamos inclusive pegar pequenas amostras desse trecho e colocar num acelerador de partículas, o que vai nos indicar os dados científicos, físico-químicos, por trás disso.

Um dado interessante sobre o aquífero é que a água que captamos em Bauru tem cerca de 100 mil anos. Ela entra no reservatório e vai andando milímetros a cada ano.

JC - Existe o problema da estiagem, que deverão ser mais longas e duradouras. Por outro lado, os dados indicam que a quantidade de chuvas não deve mudar tanto - apesar da alteração no regime delas. Como se preparar para isso?

Ricardo Hirata - A cidade está pronta, para o bem ou para o mal. Bauru funciona mesmo com todas as limitações. Existe muita infraestrutura e investimento já feitos ao longo das administrações. Poderia ser mais planejada? Eficiente? Sim, é claro. Mas precisamos olhar o agora.

Geralmente esse planejamento envolve as experiências já registradas. Você olha para o passado, para o regime de chuvas, e faz uma previsão. Hoje a situação é outra.

As mudanças climáticas globais, que avançaram sobretudo a partir dos anos 1950, tornaram frequentes fenômenos antes pouco recorrentes. Isso indica que precisamos olhar para frente. Se antes havia grandes chuvas a cada 100 anos, por exemplo, hoje elas ocorrem num intervalo de tempo mais curto.

As estiagens serão mais prolongadas, com baixa frequência de chuva, e, por outro lado, haverá precipitações mais intensas.

JC - Como isso impacta Bauru?

Ricardo Hirata - Os reservatórios superficiais vão sentir muito mais esses efeitos. Águas subterrâneas são mais resilientes, até porque tem 50, 100 mil anos. Não será a estiagem prolongada que vai atingir esses aquíferos. A questão é saber como não prejudicá-lo.

Mas há também a questão da demanda. As pessoas precisam utilizar água de maneira mais racional. Você não precisa, por exemplo, regar seu jardim ou lavar a calçada com água do DAE. Existe a possibilidade de se captar recurso da chuva ou reutilizar de outras coisas.

Ricardo Hirata estuda, pesquisa e trabalha com águas subterrâneas desde 1984
Ricardo Hirata estuda, pesquisa e trabalha com águas subterrâneas desde 1984

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