ENTREVISTA DA SEMANA

Palmira Cardoso, 108 anos: o segredo é trabalhar e dançar

Aos 108 anos, completados no último dia 16, dona Palmira cresceu na roça, casou no 'improviso' e viu seu irmão ir à Segunda Grande Guerra

Por André Fleury Moraes | 28/04/2024 | Tempo de leitura: 5 min
da Redação

André Fleury Moraes

Dona Palmira: 108 anos, ainda lúcida
Dona Palmira: 108 anos, ainda lúcida

Ela veio ao mundo quando a Batalha do Somme, a mais sangrenta da Primeira Guerra Mundial que vitimou número superior a um milhão de pessoas, nem havia começado. O Brasil acabava de promulgar seu primeiro Código Civil, medida inédita na recém-nascida República. Na Alemanha, por sua vez, surgia nada menos do que a BMW, gigante de luxo do setor automotivo. E em Lençóis Paulista nascia Palmira Guedes Cardoso, a Dona Palmira, que completou 108 anos no último dia 16.

Hoje moradora de Piratininga, onde formou família, ela se mudou para Birigui ainda criança. Seu pai trabalhava numa lavoura, caminho que Palmira precisou seguir desde a infância. "A gente cortava cana, levava nos ombros. Não tinha hora para trabalhar. Era de manhã, à tarde, à noite", contou a idosa ao JC em entrevista na noite da última quarta-feira (24).

Palmira também assumiu o trabalho doméstico ainda criança. Não havia muita alternativa -especialmente numa época em que as mulheres sequer tinham direito a voto no País. Cuidava da cozinha, lavava e passava roupa, limpava a casa. Ainda tinha de caminhar alguns quilômetros no horário de almoço para levar marmita aos trabalhadores da roça.

Deixou Birigui quando sua mãe morreu, época em que se mudou para Piratininga numa fazenda ligada à família. A propriedade pertencia ao coronel Cardoso Franco, que chegou a ser prefeito do município em 1918 e hoje dá nome a uma praça no Centro. O País ainda vivia a Primeira República, período em que o coronelismo dominava as cidades brasileiras - em Bauru e região não era diferente.

Joaquim, pai de dona Palmira, era carpinteiro e foi morar na fazenda porque era cunhado do filho do coronel, Leopoldo Cardoso, que se casou com a irmã de Joaquim. Precisava de um trabalho após a morte de sua mulher e encontrou oportunidade nas terras de Piratininga.

Palmira chegou à fazenda já adolescente. Comia o que cultivava - e comida nunca sobrou. "Batata tinha aos montes", lembra a aposentada. Também havia gado, porco e galinha. "Sempre que fazíamos festa preparávamos uma leitoa. O povo adorava", conta.

Na fazenda tinha de tudo. Mas sucesso mesmo fazia a cana, com a qual a família fazia rapadura e também aguardente. "Tínhamos um alambique por lá. Os homens adoravam", brinca. O pomar também era ponto de encontro da criançada. Tinha manga, goiaba, mexerica. Dona Palmira se lembra ainda hoje da doçura da manga, que saía de uma imponente mangueira.

Foi na fazenda, aliás, que Palmira conheceu o marido com quem conviveu a vida toda. Era ninguém menos do que seu primo, Heitor, filho de Leopoldo e dona Geraldina, a irmã de seu pai. Era uma época em que relações entre parentes era comum no País. O casal gerou Pedro e Miraci, que estão muito bem até hoje. O filho homem, aliás, recebeu esse nome em homenagem ao santo que dá nome à festa preferida de dona Palmira, São Pedro.

Os dois já trocavam olhares, mas o casamento veio por ordem superior. "Um dia meu pai chegou na casa do meu sogro, olhou para mim, para o Heitor. E sugeriu: vamos juntar esses dois?". Deu certo. O marido, nas palavras de dona Palmira, "era bonitão".

Seu cunhado, por sua vez, escrevia modas de viola. Ela mesma se lembra de algumas das letras. "Ele senta para chegar, ele senta para chegar no festeiro do luar. Ele senta para chegar, ele senta para chegar na casa do seu Leopoldo, conhecido fazendeiro", cantou a centenária durante a conversa com o JC.

O dia do casamento é que foi complicado. Palmira pegou um trem em Alba, distrito de Piratininga e onde se localizava a fazenda da família, rumo à cidade. Era o trem das onze - como na música de Raul Seixas, que na época nem imaginava que escreveria essa letra anos depois.

Carregava numa mala não apenas seu vestido, mas também as roupas que seu marido usaria na celebração. O trem parou na estação de Piratininga, Palmira e Heitor desembarcaram e o pai resolveu ficar para resolver algumas outras coisas.

A jovem Palmira, prestes a casar, resolveu deixar a mala no bagageiro - seu pai carregaria, imaginou. Mas ele se esqueceu.

A mala parou em Pederneiras. Claro que todos ficaram nervosos. Nada, no entanto, que não pudesse ser resolvido. No fim das contas, dona Palmira se casou com um vestido de sua prima. Seu marido também arrumou um terno da família. Tudo certo.

O esquecimento de seu Joaquim, porém, não foi por acaso. Naquele dia ele acabava de receber uma carta das Forças Expedicionárias Brasileiras (FEB) comunicando que seu filho Alcides, guerreiro pracinha, iria à batalha na Itália.

Alcides ficou um ano na Europa lutando contra os horrores do fascismo e do nazismo. Fazia parte do batalhão de artilharia - manuseava canhões, por exemplo - e combateu inclusive na Batalha de Monte Castello, travada entre as tropas aliadas, das quais o Brasil fazia parte, e soldados alemães, que tentavam conter o avanço dos adversários no Norte da Itália.

Os aliados venceram e abriram caminho rumo à tomada de Bolonha, comuna italiana. A FEB perdeu 103 soldados na batalha, mas Alcides voltou são e salvo. Foi recebido com festa.

Dona Palmira ainda lembra da resistência do irmão em comentar o assunto - o trauma nestes casos é quase certo, afinal - mesmo aos 108 anos, vó de Fábio e Márcio e bisavó de Heitor, nome que homenageia o marido da centenária. O segredo para se chegar a essa idade? "Trabalhar e dançar muito", crava Palmira, que nunca perdeu uma boa festa.


Irmão de dona Palmira, Alcides Guedes em foto antes de ir à guerra; ele lutou inclusive na Batalha de Monte Castello, na Itália


 Irmão de dona Palmira, Alcides Guedes em foto antes de ir à guerra; ele lutou inclusive na Batalha de Monte Castello, na Itália


Palmira sentada ao lado da família; em pé (da esq. à dir.), o neto Fábio, a nora Teresinha, o filho caçula Pedro, a filha mais velha Miraci e Walter, o genro

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