OPINIÃO

Aluga-se um olhar

Por Alexandre Benegas | 28/11/2023 | Tempo de leitura: 3 min

O autor é professor de Língua Portuguesa

Pra falar a verdade, mãe não teve igreja no casamento. Bênçãos de um Deus caro, nem vestes brancas anunciando pureza aos quatro ventos. Costureira dedicada, bordava com lilás roupas do marido, pai sonhava lavanda. Pai se dava à enxada e à monotonia da roça no tudo igual dos dias. Pai comprou terno à prestação no turco da Baixada do Silvino. Padrinhos olhavam o relógio, tanto a fazer e aquele sol superlativo. Pés irrequietos no vaivem e vemvai da sanfoneiro com intervalos consumados no arroz e frango com quiabo. Não houve bolo, também não houvera desde os dez anos de idade dela. Tempo em que mãe brincava com boneca, dessas feitas com espiga de milho. Pai queria tirar o paletó, soltar a gravata. Não antes das fotos disse mãe, sim as fotos, o que deixamos para olhos terceiros, esse objeto que fica do que fomos, dos porta-retratos a anunciarem alegrias festivas às fotografias 3x4 a dialogarem seriedade documental.

Ah, tempo, esse bailarino de efemeridades! Precisava ser assim? Uma das fotos ganha protagonismo do olhar, um olhar que não se via há tanto tempo, contemplativo, olhar de súbito, sim é preciso súbito para expectativas renovadas, ainda que o passado nos visite sem procuração de aviso, sem aceno antecipado. Foto de criança. Mãe em pé, descalça, com as braços tomados de tijolos para auxílio do pai na construção. Olhos pretos, parados de fome e exaustão. Coitada, mãe esperava a irmã mais velha desocupar os sapatos para ganhar seus passos, seus rumos.

Apesar das dificuldades, um amava o outro com a simplicidade do copo com água, do arroz inseparável do feijão, de um amor que, sendo simples, era previsível de carinho e sobretudo compreensão. Da conversa comprida da vó, dos conselhos, dar quente aos seus braços. Outras vezes, imenso silêncio da noite imensa cobrindo a gente de curiosidade. Mãe cochichava sua reza do fim do dia. Mãe crescia, se acrescentava com o que a vida lhe cabia.

Assim foi mãe. Por isso, aluga-se o olhar que um dia essa menina sorridente ofereceu, olhar de um coração repleto de terra para quem quiser jogar sementes de sonho. Essa menina sorridente foi livro em cujas páginas foram permitidos capítulos de amor e desafeto. Aluga-se um olhar que possui o encanto do girassol, a suavidade da pétala. Cuidado! Esse olhar teve sorriso de promessa como a chuva que sacia a sede da terra. Essa menina carregou em seu olhar a força do vento e a leveza do resto de nuvem, mais que isso, carregou a flor que, colocada em seus cabelos, consumou-se a certeza do encanto.

Aluga-se o olhar de quem, quando jovem, passou a desenhar como primeira tentativa de receber elogios. Coitada, pela impaciência, só conseguiu colorir esperas. Nesse olhar vai a força da convicção, aquela encontrável no quinto minuto da aurora. Dias de Natal e Ano-Novo vontades tomam curso encorajador. Motivo de alugar um olhar que conduza o homem a um futuro grávido de fé e paz.

Que nesta noite mãe possa olhar e se lembrar da costureira que foi e que fez, um dia, fazer sais franzidas apenas porque se acostumou com recolhimentos e se sente que é tempo de descansar, diz a filha à enfermeira no quarto do hospital.

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