Quando Gilberto Gil fez essa canção, além da rara felicidade da letra e harmonia no reggae e de chamar The Wailers pra se juntar a ele - The Wailers tocava com Bob Marley - ele pinçou um assunto assaz interessante. Não sei se por intenção ou se corolário, o tema "fuga" sempre ensejou discussões.
Creio que antes dos Beatles lançarem She's leaving home - Ela está saindo de casa - para o grande público, quem tinha dado a largada para a quebra do protocolo familiar foram os beatnicks, que colocaram a mochila nas costas e o pé na estrada. Porém, a letra da música dos Fab Four contava a aventura de uma adolescente que abandona o lar, deixando os pais inconsoláveis. Antes disso, era muito improvável que uma filha deixasse sua casa, apesar de muitas vezes motivos não faltarem.
À época, a repressão era muito grande e quem tinha vontade de voar, engolia o ronco porque as amarras eram poderosas. Isso até os 4 cabeludos colocarem essa minhoca bendita de liberdade na cabeça dessa nova geração, que viu ali a possibilidade de uma ruptura social. Naquela época, calça comprida só com idade grande. Os cabelos estavam sempre aparados e o patriarcalismo fazia até as esposas chamarem o marido de senhor.
Daí, fugir era já uma realidade possível, uma vez que estavam nos dando o livre arbítrio que foi um caminho sem volta. A fuga era um símbolo da alforria doméstica.
Porém, as coisas foram ganhando vulto e havia um acontecimento curioso que os casais de namorados daqueles tempos 'aprontavam', à guisa de sumir. Quando os pombinhos queriam acelerar o processo, como sempre acontece, mas de maneira definitiva e mais efetiva, sabe o que eles faziam? Fugiam. Isso mesmo. --- Sabe o fulano e a sicrana? Fugiram. O verbo era esse: fugir. Que era uma maneira de avisar os familiares que daquele momento em diante eles iriam ficar pra sempre juntos. Era uma transgressão acrescida de uma certa deferência aos pais, porque depois de ficar uma semana ou 15 dias sozinhos, obrigatoriamente eles seriam questionados e a resposta única seria o casamento sumário. Quem queria abreviar as coisas, fugia. Tem muito casal amigo que o fez e viveram felizes com as famílias abençoadas e tudo o mais. Tenho em minha família o caso de um tio que fugiu com minha tia e foram felizes para sempre.
Como toda novidade, o ineditismo se junta a pedaços do passado para formarem o quebra-cabeça da mudança pretendida. Nesse caso, o fugir era seguido de um passo para o passado, com a união perene - sem festa - para que tudo se ajeitasse. Posteriormente os processos vão se aprimorando e se tornando palatáveis e incorporados ao dia a dia, nada impedindo que certo procedimento revolucionário em um tempo, torne-se peça de museu em pouco tempo. Como exemplo, temos que hoje ninguém mais foge pra mostrar à sociedade a intenção de se casar. Junta-se os trapos e pronto. Assinar papel ficou em segundo plano para muitos.
Esse fugir dos casais que aconteceu nos anos 60/70 fez parte de um pacote que foi elaborado pela juventude, tendo como trilha sonora o rock'n'roll. Junto estava a revolução sexual e dos costumes, a emancipação das mulheres com o surgimento da pílula anticoncepcional e da sua inserção contumaz no mercado de trabalho. Pulularam grandes lutas contra o racismo e minorias, além de processos que foram substituindo a força pela liberdade. A contracultura, o movimento hippie e as manifestações contra a guerra também. São conquistas irreversíveis e fundamentais, importantes e responsáveis pelas prerrogativas que gozamos hoje em dia.
E que me parece, chegaram ao momento de serem mais cobradas, para que o saudável e histórico equilíbrio entre direitos e deveres seja restabelecido.