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OPINIÃO
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Deusducéu
Deusducéu
Por Alexandre Benegas | 11/03/2023 | Tempo de leitura: 3 min
O autor é professor de Redação
Por Alexandre Benegas
11/03/2023 - Tempo de leitura: 3 min
O autor é professor de Redação
A mãe, todo dia, é vida no balde, louça e sabão na casa do patrão. Aos sábados, manicura, pedicura e revendedora da Jequiti. Sua fé? Na estátua de São Jorge em cima da geladeira, parcelada no Magalu. Mãe reza pro orixá pra conhecer o Ceará. Sonha conhecer o mar. Domingo tem omelete com arroz e ki-suco. Quando pinga um dinheirinho a mais, é frango comprado no galinheiro, na esquina onde faz despacho. Mãe é cuidadosa. Usa na gente Neocid pra piolho e Creolina no quintal. Dia de feira, faz a xepa. Mãe é caprichosa. Tem privada combinando com o bidê azul-marinho. Mãe é inocente. Queria ser Tieta pra encantar toda gente. Acha uma graça a boca engravatada do moço dizer 'boa noite'. Mãe é desconfiada. Acha que Silvio Santos já morreu e quem ali aparece é um sósia dele. Agora, mãe braba é malandro subindo na laje pra pegar pipa. É mano de lá e de cá com cortante. Mãe é mulher de coragem lubrificada. Aconselhou um homem. Coitado, tão pobre, queria se matar (meudeusducéu!), contudo, lembrou que não tinha onde cair morto.
Mãe tenta falar com prefeito, ele nas frases de efeito. Vereador, meu senhor. Deputado propôs abaixo-assinado. Enquanto isso, bueiro sem tampa, buracos nas ruas. A praça pichada no abandono. Posto sem remédio. Médico que não veio. O homem do caminhão de lixo não passou. Falta água no bairro, se sabia? Mãe se orgulha de trabalhar tanto tempo pra mesma patroa. Mulher, de bom coração nosso senhor. Mulher chique. Ouve Chico tomando vermute em seus cristais, falando das viagens, as principais. Um dia, deu pra gente mortadela defumada e banana, a prata. Na casa-grande, mãe sonha ser sinhazinha.
Um dia, de sobremesa, mãe comprou goiabada cascão. Nesse dia, eu comi a goiabada na calçada. Deu pra ver a vizinha, acesa de vermelha em pitanga madura, com o namorado dentro da Belina. O tanto de tempo que eles passaram olhando os dedos, beijando as alianças e trocando chicletes. Ele tirava a goma de sua boca e colocava num novo beijo na língua dela. Curioso isso. O exercício do beijo passar antes pela musculação da boca chicletada. E eles num beijo de lua de mel. Prolongado, prolongado.
A cidade, construída em suas desigualdades, é vocacionada a crescer pra certos lados, lado dos bairros, do condomínio da patroa da minha mãe. No resto, crescem bíblias, estatísticas de violência. Deus e o diabo. É vila, benzedeira, pastor. Ora que melhora. Tem Deus é Amor. Chefe da boca. Bar. Sinuca. O desgraçado abusa da criança, polícia, Conselho Tutelar. Funk. Feijão aguado e outra surra do maridão. Gatonet. Lan house. O mouse não pega. O dele é pré-pago. Quanto de internet? Kombi do ovo. Só recebo depois do dia 10. Quanto eles dão de passe? Dão cesta básica? Sabão caseiro pra economizar. Beta HCG. A grávida solteira. Na verdade, quarta gravidez.
Insônia, madrugada acenando na telha-vã, sem chance, sem intervalo, a vida se esgotando num estalo, cigarro, caminhão do gás, bujão, veda com detergente para não vazar, menino da moto, cachorro, portão aberto sem cadeado, mato alto, Dengue. Aceita que tipo de vale?, caiu o sistema, escola sem aula, creche sem vaga, maço de cigarros. Promoção. Joelho de porco. Fígado. Moela. Sardinha. Tubaína. Trouxe Derby. Serve arroz no sábado? Tem macarrão. Sanol. Pague 1 e leve 2. Posso ficar com a caneta? A laje cedeu. Muro com trinco. Vacinação. Exame de sangue. Positivo. AIDS. Sífilis. Assistente social não vem hoje. Psicóloga tá de licença. O estetoscópio funciona? Gaze. Seringa. Câncer. Perna amputada. Acabaram as senhas. Vaga só pra novembro. Marcação só semana que vem. No particular é mais rápido. Artigo 331 do Código Penal (Decreto-lei 2848) - Proibido desacatar funcionário público. Fluvoxamina.
Patroa da mãe conheceu 40 países. Artigo quinto da Constituição de 1988 - Todos são iguais perante a lei. Mãe reza. Todos são iguais perante Deus.
A mãe, todo dia, é vida no balde, louça e sabão na casa do patrão. Aos sábados, manicura, pedicura e revendedora da Jequiti. Sua fé? Na estátua de São Jorge em cima da geladeira, parcelada no Magalu. Mãe reza pro orixá pra conhecer o Ceará. Sonha conhecer o mar. Domingo tem omelete com arroz e ki-suco. Quando pinga um dinheirinho a mais, é frango comprado no galinheiro, na esquina onde faz despacho. Mãe é cuidadosa. Usa na gente Neocid pra piolho e Creolina no quintal. Dia de feira, faz a xepa. Mãe é caprichosa. Tem privada combinando com o bidê azul-marinho. Mãe é inocente. Queria ser Tieta pra encantar toda gente. Acha uma graça a boca engravatada do moço dizer 'boa noite'. Mãe é desconfiada. Acha que Silvio Santos já morreu e quem ali aparece é um sósia dele. Agora, mãe braba é malandro subindo na laje pra pegar pipa. É mano de lá e de cá com cortante. Mãe é mulher de coragem lubrificada. Aconselhou um homem. Coitado, tão pobre, queria se matar (meudeusducéu!), contudo, lembrou que não tinha onde cair morto.
Mãe tenta falar com prefeito, ele nas frases de efeito. Vereador, meu senhor. Deputado propôs abaixo-assinado. Enquanto isso, bueiro sem tampa, buracos nas ruas. A praça pichada no abandono. Posto sem remédio. Médico que não veio. O homem do caminhão de lixo não passou. Falta água no bairro, se sabia? Mãe se orgulha de trabalhar tanto tempo pra mesma patroa. Mulher, de bom coração nosso senhor. Mulher chique. Ouve Chico tomando vermute em seus cristais, falando das viagens, as principais. Um dia, deu pra gente mortadela defumada e banana, a prata. Na casa-grande, mãe sonha ser sinhazinha.
Um dia, de sobremesa, mãe comprou goiabada cascão. Nesse dia, eu comi a goiabada na calçada. Deu pra ver a vizinha, acesa de vermelha em pitanga madura, com o namorado dentro da Belina. O tanto de tempo que eles passaram olhando os dedos, beijando as alianças e trocando chicletes. Ele tirava a goma de sua boca e colocava num novo beijo na língua dela. Curioso isso. O exercício do beijo passar antes pela musculação da boca chicletada. E eles num beijo de lua de mel. Prolongado, prolongado.
A cidade, construída em suas desigualdades, é vocacionada a crescer pra certos lados, lado dos bairros, do condomínio da patroa da minha mãe. No resto, crescem bíblias, estatísticas de violência. Deus e o diabo. É vila, benzedeira, pastor. Ora que melhora. Tem Deus é Amor. Chefe da boca. Bar. Sinuca. O desgraçado abusa da criança, polícia, Conselho Tutelar. Funk. Feijão aguado e outra surra do maridão. Gatonet. Lan house. O mouse não pega. O dele é pré-pago. Quanto de internet? Kombi do ovo. Só recebo depois do dia 10. Quanto eles dão de passe? Dão cesta básica? Sabão caseiro pra economizar. Beta HCG. A grávida solteira. Na verdade, quarta gravidez.
Insônia, madrugada acenando na telha-vã, sem chance, sem intervalo, a vida se esgotando num estalo, cigarro, caminhão do gás, bujão, veda com detergente para não vazar, menino da moto, cachorro, portão aberto sem cadeado, mato alto, Dengue. Aceita que tipo de vale?, caiu o sistema, escola sem aula, creche sem vaga, maço de cigarros. Promoção. Joelho de porco. Fígado. Moela. Sardinha. Tubaína. Trouxe Derby. Serve arroz no sábado? Tem macarrão. Sanol. Pague 1 e leve 2. Posso ficar com a caneta? A laje cedeu. Muro com trinco. Vacinação. Exame de sangue. Positivo. AIDS. Sífilis. Assistente social não vem hoje. Psicóloga tá de licença. O estetoscópio funciona? Gaze. Seringa. Câncer. Perna amputada. Acabaram as senhas. Vaga só pra novembro. Marcação só semana que vem. No particular é mais rápido. Artigo 331 do Código Penal (Decreto-lei 2848) - Proibido desacatar funcionário público. Fluvoxamina.
Patroa da mãe conheceu 40 países. Artigo quinto da Constituição de 1988 - Todos são iguais perante a lei. Mãe reza. Todos são iguais perante Deus.
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#EDIÇÃO_445 - 20/03/2023

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