
Pastor, cantor e compositor, o artista Silas Furtado, 60 anos, se lembra muito bem da época em que a música gospel era marcada por um tradicionalismo que não aceitava mudanças. "Eram os mesmos instrumentos, o mesmo ritmo. E falar em mudar isso era um tabu muito grande", conta. Essa tarefa, mais do que complicada, acabou nas mãos dele. Deste desafio surgiria a Kadoshi, banda que hoje é símbolo internacional do gospel.
Silas começou a carreira artística ainda criança, aos 9 anos, quando passou a participar do coral de sua igreja. Era uma época em que o público evangélico no Brasil era muito menor do que é atualmente - havia cerca de 5,2 milhões de evangélicos no País em 1970, segundo dados do IBGE - e os grupos que tocavam nas igrejas eram compostos majoritariamente pela própria comunidade do bairro.
Veio de uma família tradicional, mas isso não impediu que um primo o apresentasse milhares de vinis. Foram os discos que levaram Silas a conhecer gêneros diversos.
Ouviu rock, samba, MPB. Mas pegou gosto mesmo foi pelo jazz e pelo blues. "Me apaixonei na hora", contou Silas em entrevista ao JC na semana passada. Foi quando veio a indagação: por que não levar esses estilos para dentro da igreja?
O artista fundou sua primeira banda, Actos 2, ao lado de dois dos seus sete irmãos. Todos aprenderam sozinhos a tocar instrumentos. "Na infância havia um violão de uma corda só em casa", conta Silas.
Com músicas autorais, a trajetória da banda começou com o entusiasmo de um jovem que pretendia mudar o mundo gospel. "Era um estilo americanizado, você não via isso no Brasil. Até então era terminantemente proibido você levar uma bateria à igreja", lembra.
O grupo conquistou os primeiros fãs ainda no início da banda. Com o sucesso, porém, veio também o preconceito. "Cativamos primeiro o público jovem. E ouvíamos relatos, por exemplo, de pais que quebravam os discos dos filhos ao descobrir que eles nos escutavam", lamenta.
O pior, lembra Silas, era a resistência dentro da própria igreja. "Foram muitos obstáculos", afirma.
PRODUÇÃO
O primeiro disco da Actos 2 foi um verdadeiro sucesso. O caminho até que ele fosse lançado, no entanto, exigiu que o grupo fizesse algumas concessões. "Vendemos carro, foi uma loucura para levantar dinheiro. Tiramos de onde não tínhamos", relata. "Só não fizemos empréstimo no banco".
Na época, a Actos foi auxiliada por um produtor que trabalhava para um cover dos Beatles. Nas palavras de Silas, "foi uma grande produção". Para muito além de jazz e blues como gêneros presentes na melodia, a banda trazia também fortes traços do movimento negro americano - de onde surgiram, em grande parte, os estilos que a Actos adotou.
O trio passou a se chamar Kadoshi no final dos anos 1980. A mudança definitiva de nomenclatura selou o caminho da banda para transformar a música gospel. "Temos orgulho em dizer que revolucionamos o setor", diz Silas.
A ruptura não aconteceu apenas no ambiente interno. Com um público ouvinte massivamente jovem, a Kadoshi atraiu essa faixa etária também para o evangelho. "A presença da juventude nas igrejas aumentou de uma maneira incrível", lembra.
Mas não é só. Com cada vez mais ouvintes, as letras do grupo - que hoje tem uma diferente composição, sendo formado por Silas e seus dois filhos - são também o último sinal de esperança para muita gente.
"Uma vez, uma mulher me reconheceu na rua e contou que estava decidida a cometer suicídio. Iria se jogar da janela de seu prédio. De repente ouviu uma música nossa, 'Encontro', e mudou de opinião. Ela me agradeceu como se eu fosse um velho amigo. Isso me marcou muito", diz Silas.
O artista admite que a revolução digital transformou substancialmente o setor musical. A Kadoshi, porém, consegue lidar muito bem com a transição. Na segunda-feira (20), quando concedeu entrevista para o JC, Silas havia acabado de receber a notícia do dia: foi confirmada a turnê da banda pelo Japão. "Que venham as próximas", diz.