ENTREVISTA

Nikolaus Engelmayer Bauernebl: um mestre na arte da cerveja e da vida

Por Tisa Moraes | da Redação
| Tempo de leitura: 5 min
Arquivo pessoal
Nikolaus Engelmayer Bauernebl
Nikolaus Engelmayer Bauernebl

Início de ano é uma época importante na vida do mestre-cervejeiro Nikolaus Engelmayer Bauernebl e mais ainda neste 2023. Em 12 de janeiro, ele completou 90 anos e em 1 de março, celebrará a primeira década de sua cervejaria Servus Bier - dois marcos que coroam uma história de muita coragem e vigor.

Nascido em Budapeste, na Hungria, ele tornou-se refugiado ainda na infância, após os soviéticos tomarem o país, durante a Ofensiva de Budapeste, na Segunda Guerra Mundial. Representante da oitava geração de mestres-cervejeiros da família, Nikolaus teve a oportunidade de reconstruir a vida no Brasil, mais precisamente em Agudos, onde chegou ao comando cervejeiro da fábrica local da Brahma, empresa em que atuou por 43 anos.

Também ajudou a escrever a história da Cervejaria dos Monges, até abrir sua própria microcervejaria, a Servus, transmitindo seus ensinamentos ao filho Paulo e à neta Amanda, que trabalham com ele. Com a esposa, a professora Alair Prado (in memoriam), também teve os filhos Eleonora e Peter Klaus.

Com incrível vitalidade, cita sem titubear todas as datas de suas mais importantes passagens, como se fosse uma enciclopédia de si mesmo. Por isso e por cuidar muito do físico, rejeita ser chamado de senhor (corrigiu a reportagem várias vezes). Nesta entrevista, Nikolaus relembra momentos marcantes de sua história incrível de vida, os anos de fome, a decisão de morar no Brasil sem saber falar português e como, com entusiasmo e disciplina, conseguiu construir uma trajetória de sucesso.

JC - Parte da sua infância foi em meio a um momento crítico na Europa. O que se lembra daquela época?

Nikolaus - Meu pai tinha uma cervejaria na cidade de Kosice, que hoje fica na Eslováquia, mas pertenceu à Hungria até 1918, quando o Império Austro-Húngaro e a Alemanha perderam a Primeira Guerra e os Aliados entregaram este território para a Tchecoslováquia. Já em 1938, quando Hitler invadiu este país, o território foi devolvido à Hungria. Quando os russos tomaram a Hungria, entre 1944 e 1945, nós fugimos para a Áustria. Eu tinha 12 anos. Moramos em uma cidade maravilhosa, turística, chamada Traunkirchen. Porém foi muito difícil, porque, durante a guerra, não tinha turismo. Passamos fome por dois anos. Minha mãe colocava a gente para dormir cedo porque não tinha jantar.

JC - Foi na Áustria que começou a desenvolver habilidades para se tornar mestre-cervejeiro?

Nikolaus - Meu pai voltou à Hungria para tentar trocar a cervejaria por um sítio. Ele ficou doente e, por nove anos, fiquei sem vê-lo. Eu estava estudando e, como era o homem mais velho da casa, me sentia responsável pela família. Fiz um curso profissionalizante e comecei a trabalhar em uma cervejaria pequena, onde fiquei por três anos como aprendiz. Um belo dia, li, no jornal, que a maior cervejaria da Áustria iria abrir uma unidade no Brasil e estava procurando cervejeiros jovens. Me candidatei, passei no teste e vim para o Brasil. Eu tinha 20 anos e vim sem saber falar nada de português. Foram 14 dias de viagem de navio até Santos. Depois, fui de perua até São Paulo e, de lá, até Agudos, para trabalhar na Companhia Paulista de Cervejas Vienenses.

JC - O processo de adaptação foi difícil?

Nikolaus - Não. Como já era refugiado na Áustria, com uma vida simples, em uma cidade pequena, me adaptei logo. No segundo dia no Brasil, mandei fazer três ternos. Não trouxe nenhum da Áustria porque disseram que a cervejaria ficava no meio do mato - e, de fato, ficava. Mas, nos bailes, era obrigatório usar terno. Eu gostava de dançar e, conhecendo os moradores de Agudos, fui aprendendo o idioma. Eles me ajudaram bastante.

JC - E como se tornou o principal mestre-cervejeiro da Brahma de Agudos?

Nikolaus - Sempre trabalhei com muito entusiasmo. Quando entrei, era o mais jovem da turma. Depois de um ano e meio, fizemos uma cerveja que foi um grande sucesso e, logo em seguida, a cervejaria foi comprada pela Brahma, dirigida por alemães. O mestre-cervejeiro me ofereceu uma pós-graduação na Alemanha e, naquela época, eu já estava namorando a Alair, então, nos casamos para ela ir comigo. Ficamos nove meses e voltamos. O segundo-mestre cervejeiro, que tinha cargo de gerente de produção, saiu da empresa e eu, com 24 anos, assumi a função. Em 1976, o primeiro mestre-cervejeiro faleceu e passei a exercer este cargo, que é o mais alto dentro da cervejaria, de onde saí somente em 1995, aos 62 anos.

JC - E, na época, você ainda estava longe de pensar em parar?

Nikolaus - Entendi que tinha cumprido um ciclo dentro da Brahma e pensava em ter uma microcervejaria. Em 1998, fui convidado para ser mestre-cervejeiro da Cervejaria dos Monges, antes de sua inauguração. Fizemos uma cerveja que todo mundo gostou e que foi eleita, em 2001, na Fispal, a melhor de todas as microcervejarias do Brasil. Na época, eram 70 empresas. Hoje, são mais de 3 mil. Sempre comento que a Cervejaria dos Monges abriu caminho para o desenvolvimento da parte sul de Bauru. Na época, a Getúlio Vargas era rua de terra, não havia tantos condomínios.

JC - Quando decidiu abrir a própria microcervejaria?

Nikolaus - Fiquei na Cervejaria dos Monges por quatro anos, tempo em que amadureci a ideia de abrir uma microcervejaria própria. Comprei dois terrenos grandes (na Vila Aviação). Servus é o cumprimento, tanto na chegada, quanto na despedida, usado na Hungria, sul da Alemanha e Áustria e significa servir, em latim. Começamos a construção em 2011 e inauguramos em 1 de março de 2013.

JC - Qual é o segredo para chegar aos 90 anos em plena atividade?

Nikolaus - Pratiquei esporte durante toda a vida, especialmente natação e pingue-pongue. Hoje, faço ginástica e pilates, cada um deles duas vezes por semana, e também tenho uma alimentação com bastante fruta e pouca gordura. Além disso, continuar trabalhando, criando, também ajuda a manter a cabeça ativa. São 90 anos bem vividos, com muito a fazer ainda.

Nikolaus na comemoração de seus 90 anos com a neta Carina / Foto: Arquivo Pessoal
Nikolaus na comemoração de seus 90 anos com a neta Carina / Foto: Arquivo Pessoal
Nikolaus (ao centro), com os filhos Eleonora e Paulo, o genro Herman Meyer e o filho Peter Klaus, em Biergarten, Viena, na Áustria / Foto: Arquivo Pessoal
Nikolaus (ao centro), com os filhos Eleonora e Paulo, o genro Herman Meyer e o filho Peter Klaus, em Biergarten, Viena, na Áustria / Foto: Arquivo Pessoal
Kosice, na Eslováquia, onde Nikolaus viveu até os 11 anos; ao fundo, o castelo que pertenceu à família dele até a Segunda Guerra Mundial / Foto: Arquivo Pessoal
Kosice, na Eslováquia, onde Nikolaus viveu até os 11 anos; ao fundo, o castelo que pertenceu à família dele até a Segunda Guerra Mundial / Foto: Arquivo Pessoal
Nikolaus em Praga, famosa pelas cervejas; ao fundo, Catedral de São Nikolaus / Foto: Arquivo Pessoal
Nikolaus em Praga, famosa pelas cervejas; ao fundo, Catedral de São Nikolaus / Foto: Arquivo Pessoal
Nikolaus com o filho Paulo ao lado da estátua de São Floriano, patrono dos Cervejeiros, na Abadia de São Floriano, na Áustria / Foto: Arquivo Pessoal
Nikolaus com o filho Paulo ao lado da estátua de São Floriano, patrono dos Cervejeiros, na Abadia de São Floriano, na Áustria / Foto: Arquivo Pessoal

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