BAURU

Com materiais das ruas, catadora constrói sala de estudos na periferia

Por Marcele Tonelli | da Redação
| Tempo de leitura: 4 min
Marcele Tonelli
Dona Rose pegou madeiras pela rua e até janela do lixo para construir sala de estudos, que tem estimulado crianças e jovens do Piquete 1
Dona Rose pegou madeiras pela rua e até janela do lixo para construir sala de estudos, que tem estimulado crianças e jovens do Piquete 1

"É uma salinha bem humilde, mas já ajuda a tirar as crianças da rua e a dar uma pequena esperança pra gente". A frase é da catadora de recicláveis Rosemeire Ignácio Pedro, de 59 anos, e está só parcialmente correta. Na verdade, o que ela fez traz uma esperança gigantesca - e não só para a comunidade, mas a todos nós. Com os materiais que encontra pelas ruas durante o trabalho e com as próprias mãos, a moradora do Piquete 1 - comunidade de alta vulnerabilidade social no Fortunato Rocha Lima, região Norte de Bauru - construiu uma espécie de sala de estudos no bairro.

Ser professora nunca foi um sonho e também não é uma pretensão dela, mas é na sala erguida em frente ao seu barraco que dona Rose - como é chamada por lá -, mesmo tendo estudado somente até a 4.ª série, tem incentivado a leitura em crianças e adolescentes da comunidade.

"Eu sonho com um futuro melhor para os meus netos e para todas essas crianças do Piquete. Pegar reciclável na rua não é fácil, tem muita gente passando necessidade por aqui", ressalta ela, contando que vive com a guarda de quatro dos 13 netos que possui.

'COM A IMAGINAÇÃO'

A sala de estudos tem aproximadamente 20 metros de comprimento por 10 metros de largura. O chão é de terra batida e as telhas, dos mais variados tipos. A porta e uma janela que ventilam o local foram resgatadas do lixo. Os livros são todos doados. E, embora o espaço conte com carteiras, não há lousa.

"Aqui, eu costumo lidar é com a imaginação deles, contando histórias e fazendo desenhos", explica Rose. "Uma lousa até que ajudaria, mas ainda não dei sorte de conseguir achar alguma. Por outro lado, conseguimos uma boa doação de caixas de lápis de cor, tintas, giz de cera e papéis para desenho, que é o que as crianças mais gostam. Felizmente, de vez em quando, pessoas boas aparecem para nos ajudar", completa a moradora.

Inclusive, uma dessas ajudas veio no início deste mês, quando o Grupo Voluntários em Ação doou um grande kit de material escolar ao projeto.

As carteiras, também doadas, eram de uma igreja no bairro que tem apoiado a ação de dona Rose. Às sextas-feiras, os fiéis costumam entregar marmitas no local e, aos sábados à tarde, eles promovem palestras e chás com bolachas na salinha de estudos.

INCENTIVO

A moradora conta que o espaço começou a tomar forma há dois anos, quando a pandemia provocou a suspensão das aulas presenciais nas escolas. "Temos 135 crianças no bairro e muitas ficavam o dia todo na rua. Depois que ergui esse espaço, a 'bagunça' passou a ficar sob os nossos olhares", conta.

Rose mudou para o Piquete há cinco anos, pouco tempo após perder o emprego como cozinheira de um restaurante. Ela morava em um apartamento do Minha Casa Minha Vida (MCMV) que fica a poucas quadras de onde reside hoje, mas, sem a renda fixa, ficou impossível arcar com despesas como água, luz, IPTU, parcela do programa habitacional e condomínio. "O que eu ganho hoje vai só para comida e mesmo assim é pouco", ressalta a mulher, que recebe ainda o Auxílio Brasil.

Justamente diante da rotina difícil que carrega sobre os ombros diariamente e da expectativa de estimular uma vida melhor para os netos e para crianças e jovens de toda a comunidade, ela decidiu se mexer e erguer a salinha de estudos.

'AMIGA DAS CRIANÇAS'

O local fica aberto praticamente o dia todo. E, hoje, as crianças costumam aparecer em peso no contraturno das escolas ou em dias não letivos. "Ninguém entra aqui sem que eu saiba, todos respeitam esse lugar", relata a moradora. "Sinto que virei amiga das crianças. Elas me chamam não só para fazer atividades, mas para contar até das brigas em casa. Eu converso e tento orientar", detalha.

Proteção e carinho que ela demonstra ao revelar quais seus principais pedidos em orações atualmente. "Queria tanto um fogão, um gás de cozinha, uma geladeira e mantimentos para poder fazer 'merenda' para essas crianças. É difícil prestar atenção nas coisas com fome… um bolo, um arroz-doce e um mingau já ajudariam muito", afirma. "Também seria importante uma TV e um banheiro para eles aqui", pede a moradora, em tom de esperança.

A mesma esperança que, como dito no início desta reportagem, tem sido trazida e alimentada pelo feito de dona Rose. E quem quiser ajudar a reforçar esse sentimento colaborando com doações para a salinha de estudos pode ligar no (14) 99158-6319.

REDUTO DA ESPERANÇA

Mais do que catalisar a imaginação de crianças e adolescentes, as atividades na sala do Piquete 1 estão mexendo com a vida de toda a comunidade local.

"Tô sempre lendo alguma coisa aqui e isso me inspira a ir atrás do meu sonho, que é ser perita. Consegui entrar até em um curso já", comenta Ingrid Vitória, de 12 anos, neta da dona Rose.

O espaço também tem virado motivo de esperança para as demais mulheres do bairro. "Estamos planejando usar a sala em alguns horários para aprender crochê, pinturas e tricô. Seria ótimo poder deixar as ruas e viver da produção de artesanatos, eu teria mais tempo para meus filhos", comenta Tânia Bernardes, 33 anos, catadora de recicláveis.

Depois que passou a ler mais, até a própria dona Rose tem planejado uma vida diferente para o próprio futuro. "Quero fazer supletivo e um curso para ser confeiteira", finaliza. 

  

Com materiais recolhidos em andanças pelas ruas de Bauru e doações, Rosemeire Pedro construiu sala de estudos para crianças do Piquete 1 não ficarem pelas ruas contraturno escolar (Foto: Marcele Tonelli)
Com materiais recolhidos em andanças pelas ruas de Bauru e doações, Rosemeire Pedro construiu sala de estudos para crianças do Piquete 1 não ficarem pelas ruas contraturno escolar (Foto: Marcele Tonelli)
Ingrid Vitória, de 12 anos:
Ingrid Vitória, de 12 anos: "Tô sempre lendo alguma coisa aqui" (Foto: Marcele Tonelli)

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