Cultura

Brincando de paz

(*) Padre Beto
| Tempo de leitura: 4 min

(*) Especial para o JC Cultura

Todos nós temos dias menos inspiradores. Nestes tudo parece não ter um desenvolvimento razoável e aquilo que conseguimos realizar nos deixa insatisfeitos. Justamente em um destes dias, eu deveria terminar um artigo para enviar ao JC.

O tema ainda continuava indefinido, as palavras adequadas não vinham à cabeça e os olhos começavam a se fixar nos ponteiros do relógio. Para ajudar, um grupo de crianças fazia a maior algazarra no jardim debaixo de minha janela.

Sem dúvida alguma, eu não tenho nada contra crianças, muito pelo contrário. Mas, o momento não era ideal para tê-las perto de mim. Por várias vezes, tentei ignorar a barulheira que faziam, mas era inevitável a minha falta de concentração.

Já com uma certa irritação, tive uma idéia que poderia solucionar pelo menos o problema com as crianças. Dirigi-me à janela do quarto e, como quem não queria nada, interrompi a brincadeira das crianças perguntando a elas do que estavam brincando. “Nós estamos brincando de guerra!”, responderam as crianças.

“Brincando de guerra?”, continuei aproveitando a deixa, “mas vocês não sabem que guerra é uma coisa ruim? Muitas pessoas morrem na guerra. Crianças ficam sem pais, e muitos ficam feridos...

Vocês deveriam brincar de paz e não de guerra!” As crianças me olharam de maneira esquisita e se afastaram da janela reunindo-se em um dos cantos de nosso jardim. Algumas cochichavam aos ouvidos e outras mantinham-se em silêncio.

Satisfeito, voltei para o computador convencido de que teria tranqüilidade para pensar sobre o artigo daquela semana. Porém, mal havia recomeçado a escrever quando fui interrompido pelas crianças que gritavam insistentemente meu nome.

Ao aparecer na janela, o grupo de crianças, com muita curiosidade, perguntava-me em uma só voz: “Padre, como se brinca de paz?” A paz, como a felicidade, sempre foi um objetivo do ser humano. Não é por menos que desde a Antigüidade, as palavras “Shalom”, “eirene” ou “pax” sempre foram formas de saudação cordial entre os amigos.

No ocidente, por exemplo, os cristãos desejam “a paz de Cristo” uns aos outros nas celebrações religiosas e, no momento da morte de alguém, é praticamente inevitável ouvir a expressão “descansou em paz” (requiescat in pace).

Se a paz como objetivo é algo inquestionável, o mesmo não podemos afirmar de sua compreensão. Muitos buscam a paz, mas poucos conhecem realmente seu significado. Em primeiro lugar, devemos compreender que a paz, como a felicidade, deve envolver todas as dimensões de nossa vida.

A paz de consciência, a paz individual e familiar, a paz entre grupos e nações, a paz espiritual e social não podem existir separadamente. A paz pode não ser eterna, mas ela possui, com certeza, uma clara exigência: o domínio total de todo espaço que envolve o ser humano. Assim, a paz de consciência está intimamente ligada à paz familiar que não se desvincula da paz social.

Uma sociedade marcada pela criminalidade, corrupção e violação dos direitos humanos, é com certeza uma sociedade marcada por uma crise da instituição “família” e formada de indivíduos que vivem com freqüência a falta de paz interior ou o tão conhecido “peso na consciência”. Outro aspecto importante para compreender o significado da palavra “paz” é a sua dimensão ética.

É fundamental entender que paz não é uma situação alcançada simplesmente por uma via religiosa ou espiritual, mas basicamente ética. Meditação e oração ajudam, mas a paz é construída essencialmente através de uma ação política e social. Como dizia Rosseau, “a melhor maneira de pedir a Deus é tornarmo-nos merecedores do que desejamos”. Um ótimo exemplo para entendermos a relação entre ética e paz é a nossa própria sociedade.

A situação de violência, a qual a sociedade brasileira há muito tempo suporta, possui suas raízes na má distribuição de renda, nas péssimas condições de moradia de grande parte da população, na má qualidade do sistema de saúde oferecido pelo Estado e principalmente na impossibilidade de acesso à educação e cultura por grande parte da população.

Com a perda do imaginário, do estudo, da cultura, da leitura ou do contato com as artes surge a insensibilidade que conduz o ser humano a um processo de brutalização. A base de toda esta estrutura que gera violência em nosso país é basicamente uma falha de relação ética: o desinteresse pelo Outro.

Assim, construir a paz não significa simplesmente evitar violência, mas principalmente aumentar o nosso compromisso político e a nossa solidariedade como também manifestar com mais clareza a nossa insatisfação diante do descaso em relação ao bem comum.

“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.” (Ruy Barbosa)

Fale comigo pelo e-mail: roberto.daniel@lycos.com

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