O slogan “Cidade sem limitesâ€, adotado na década de 50 a partir de título de poesia de Euzébio Guerra, não reflete a identidade de Bauru. O município, com 316.064 habitantes segundo o Censo 2000 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tem expansão limitada nas regiões leste e sul por problemas, respectivamente, de capacidade de reservação e drenagem de água.
O fato da realidade econômica atual ser diferente da década de 50 também reduz a representativa do slogan “Cidade sem limitesâ€. O que, do ponto de vista histórico, é natural, explica a historiadora Lidia Maria Vianna Possas, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Marília. “Como imagem, os slogans são criados para atender situações que a cidade passaâ€, diz.
A cientista política Maria Teresa Miceli Kerbauy, professora da Unesp de Bauru, concorda. “Esse slogan, que é mais antigo, tinha a ver com um movimento, que era uma ligação com a ferrovia. Quando a ferrovia perde a importância, a cidade deixa de se identificar com esse entroncamento rodofer-roviário e perde essa identidade.â€
A Bauru dos anos 50 vinha embalada pela explosão populacional da década de 40 e o movimento nervoso da ferrovia, que atraía dezenas de migrantes diariamente. Razão que motivou a fundação do Albergue Noturno em fevereiro de 1951 pelo Centro Espírita Amor e Caridade. O período também tinha como marca a política populista, representada pelo ex-prefeito Nicola Avalone Jr., o Nicolinha.
Foi de Nicolinha, a idéia de utilizar o título da poesia “Cidade sem limitesâ€, de Euzébio Guerra, como slogan municipal.
Com a atitude, mais uma vez Bauru passou a ter imagem criada por um grupo político. Isso resultou em nova identidade desenvolvida a partir de ponto de vista único, que era o da elite então dominante.
E essa elite via a cidade como uma metrópole, que como tal comanda a expansão. Os estranhos a esse grupo, como visitantes e ativistas culturais, no entanto, não enxergavam Bauru como um município arrojado.
O cronista Breno Ferraz, encarregado pelo jornal O Estado de S. Paulo de conhecer o interior paulista, por exemplo, descreveu Bauru como “a ponta dos trilhosâ€.
“Para ele, a cidade não tinha boa feição. Enquanto em suas crônicas Lençóis Paulista foi definida como ‘uma pequena colméia de trabalhadores’, Bauru foi descrita como uma cidade improvisada. Breno a tinha como uma cidade contraditória, porque era provinciana e enfrentava o desenvolvimentoâ€, cita Possas.
A diferenças nas abstrações não paravam por aí. Enquanto a elite política insistia em vender o slogan vinculando-o a uma imagem de Bauru progressiva, de expansão de limites geográficos, o “sem limites†era entendido por poetas e escritores como ausência de ancestralidade, de “berçoâ€.
“Isso pode ser encontrado em crônicas e romances da época e fica muito claro nas anotações de Plínio Salgado, que esteve em Bauru para promover o integralismo. Ele dizia que na cidade as coisas passavam muito rápido, eram passageiras. Essa análise era feita com base nos valores da sociedade bauruense. Para ele, o integralismo só vingaria aqui se os bauruenses pudessem encontrar laçosâ€, comenta a professora da Unesp.
Tal ausência de ‘berço’ ficava clara quando se comparava a Bauru de movimentos rápidos, cabarés e grandes festas de carnaval a Jaú cafeicultora, conservadora, de valores extremamente arraigados.
Essa contradição entre a visão da elite e a visão dos ‘estrangeiros’, nos quais pode-se incluir muitos que acabaram estabelecendo residência em Bauru, é que por si só enfraqueceu o slogan “Cidade sem limitesâ€.
“Como os outros slogans, a população de Bauru não se vê dentro dessas identidades. A construção oficial não cola na construção coletiva. Isso só vai mudar quando se respeitar a coletividade, o que é representativo para cada bairro, suas diferenças, histórias e perspectivas, ou seja, as representações que a cidade se autoconfec-cionaâ€, sustenta Possas.
Falta de representação atrapalha movimento preservacionista
A ausência de identidade dificulta o movimento preser-vacionista em Bauru. A avaliação é da historiadora Lidia Maria Vianna Possas, professora da Unesp de Marília e membro da ONG S.O.S. Ferrovia.
“Não dá para motivar a coletividade criando laços que as pessoas não têm. As pessoas não se identificam com marcas personalistasâ€, argumenta Possas.
Entre essas marcas, a historiadora cita as bolas vermelhas utilizadas pela administração do ex-prefeito Antônio Izzo Filho. Como as esferas, grande parte dos símbolos utilizados para representar Bauru atendem a períodos que correspondem a mandatos.
Rápidas e sintonizadas com interesses da elite, essas representações não fixam na memória da população e, conseqüentemente, não estabelecem laços. “E se as imagens não grudarem nos sentimentos das pessoas, elas vão emboraâ€, diz Possas citando um sociólogo europeu.
É por essa razão e pela mobilidade social que marca a história da cidade, analisa a historiadora, que pesquisadores e órgãos públicos encontram dificuldade em desenvolver um movimento preservacionista no município.
A ausência de identidade implica também em dificuldades para construção política, como a escolha de representantes federais.
“Por essa razão é importante trabalhar com a memória, para criar identidade e motivos para se lutar. Para mudar, Bauru precisa olhar para o seu umbigo, usar suas potencialidadesâ€, sustenta a professora.
E olhar-se inclui refletir sobre a heterogeneidade de identidades que formam Bauru. Essas facetas múltiplas ficaram evidenciadas na tese de doutorado “Rumo ao concretoâ€, de autoria da pesquisadora Lúcia Helena Ferraz Sant’Agostinho, defendida na Universidade de São Paulo (USP).
Por meio da análise de 1.000 fotos produzidas por 77 moradores dos bairros Bela Vista, Jardim Europa, Jardim Aeroporto, Redentor, Vila Independência e Terra Branca, Sant’Agostinho concluiu que Bauru é uma cidade fragmentada, com modos de vida e pensamentos distintos.
“Eu acho que talvez pudesse encontrar na cidade uma homogeneidade, uma identidade única. Mas Bauru não tem. Isso é uma coisa que é muito importante para o planejamento urbano. A gente tem quadros de valores, modos de viver, bastante diferentes entre os bairrosâ€, concluiu Sant’Agostinho em entrevista publicada pelo JC na edição de 24 de março deste ano.
Na opinião de Possas, as diferenças apontadas por Sant’Agostinho evidenciam representações que o município se autoconfeciona e devem ser respeitadas. “Daí a necessidade de evitar a guerra de imagens, de exigir a imitação de algo que não somosâ€, afirma a historiadora.
Imagens
Ao longo da história, Bauru foi identificada por vários slogans. Para atender interesses históricos vindos, em sua maioria, da elite, essas representações tentaram vender o município como uma metrópole que norteava todo o avanço da região noroeste.
Foi assim no final do século 19, quando Bauru passou a ser identificada como “Boca do sertãoâ€. O slogan remetia ao desbravamento do interior e toda mítica em torno dele: índios, mata cerrada e calor.
Na década de 20, Rodrigues Alves definiu Bauru como “Cidade de espantosâ€. A ele também é atribuída a frase: “Os Rolls-Royce atolam no areiãoâ€. “Por meio delas ele queria acentuar as contradições do municípioâ€, explica a historiadora Lidia Maria Vianna Possas.
Nos anos 40, de acordo com o memorialista Luciano Dias Pires, diretor do Instituto Histórico Antônio Eufrásio de Toledo e redator do “Bauru Ilustrado, outros slogans foram criados. É dessa época “Bauru: apoteose do trabalhoâ€. “Mas não pegouâ€, ressalta Pires.
Na década de 50, enfim, viria o slogan que continua a ser adotado até hoje pelas lideranças políticas: “Cidade sem limitesâ€.
Conta a história que Nicola Avallone Jr. passou a divulgar o slogan após ler poesia de mesmo nome escrita por Euzébio Guerra. O texto era uma ode ufanista ao desenvolvimento local.
“Eu te admiro: / mais do que isso tudo, / porque ultrapassas em cada instante as tuas fronteiras, / porque te arrojas para além, sempre para mais longe / Bauru, Cidade Sem Limitesâ€, declamou Euzébio Guerra.