Criados nas primeiras décadas do século 20, o brasão de armas e a bandeira de Bauru não mais representam com exatidão o município. As mudanças socioeconômicas e a devastação do meio ambiente acabaram por tornar as figuras neles presentes símbolos ultrapassados, que hoje figuram apenas nas memórias dos mais velhos e de quem conhece a história local.
Um exemplo disso é a suçuarana, uma espécie de onça comum na época do surgimento de Bauru e que hoje, na região, é encontrada apenas em matas de Agudos.
“Também conhecida como onça parda e cougar, a suçuarana ocorre desde a Patagônia até o Texas. No Brasil, devido às culturas, ela foi dizimada e encontra-se em processo de extinção. Na região de Bauru não foi diferenteâ€, explica Luiz Pires, secretário municipal do Meio Ambiente e diretor do Parque Zoológico Municipal.
Pelo fato de cada indivíduo da espécie exigir 25 quilômetros quadrados de área, sua criação em cativeiro e sua presença como exemplar do Zôo se tornam impraticáveis.
â€œÉ triste que a suçuarana exista apenas no brasão de armas do município como é triste ver outras exemplares da fauna brasileira correndo risco de extinçãoâ€, afirma Pires, para quem a expansão desordenada por meio de grandes loteamentos motivou os problemas ambientais de Bauru.
Além da fauna, a expansão dos loteamentos para os arredores da cidade sem o aproveitamento dos terrenos disponíveis na região central acabou por reduzir a quantidade de mata nativa, simbolizada pelo verde do brasão e da bandeira municipais.
O cerrado, que antes ocupava praticamente toda a extensão do município, hoje está restrito à área de 324 quilômetros quadrados do Jardim Botânico Municipal. “Há outros fragmentos de mata na área da cidade, mas são insuficientes para a reprodução de toda cadeia ecológicaâ€, comenta Ivan Alexandre Ferrazoli de Marche, secretário-executivo do Instituto Ambiental Vidágua.
Embora a área do Jardim Botânico represente 0,8% do cerrado remanescente do estado de São Paulo, o que é uma mancha expressiva, segundo de Marche, a quantidade de mata local poderia ser maior hoje se situações como a de um trator abrindo ruas em meio ao verde local tivessem sido evitadas na década de 50.
Essa imagem, retratada numa fotografia do acervo do Vidágua, é o símbolo da ocupação desordenada do solo bauruense e causa do verde do brasão e da bandeira ter se transformado numa idéia próxima do abstrato.
Constelação
Igualmente na memória dos mais velhos, as antigas ferrovias Noroeste do Brasil, Paulista e Sorocabana estão representadas no brasão por meio de três estrelas. Símbolos da fase de desenvolvimento acelerado da cidade, em que o comércio fervilhava a cada quinto dia útil do mês, as ferrovias hoje resumem-se a um grupo de prédios e objetos mal conservados e ao transporte de carga de minérios, derivados de petróleo e álcool e grãos.
De maior entroncamento ferroviário do Brasil, Bauru passou a ser integrante de dois dos corredores ferroviários nacionais.
“Essa mudança foi provocada pelos processos de concessão de ferrovias, que são ótimos para os empresários e péssimos para os trabalhadores e a sociedade, que agora convivem com patrimônios abandonadosâ€, critica Roque Ferreira, presidente licenciado do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias de Bauru, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.
Em Bauru, essa visão empresarial pode fazer com que a Estação Ferroviária da Noroeste, patrimônio histórico e arquitetônico municipal, continue abandonada ao invés de passar para as mãos de um grupo de empresários que desejam transformá-la em centro de cultura e lazer. O processo está na Justiça e não tem prazo para ser concluído.
Até lá, os prédios continuarão ruindo, transformando em pó um trecho da história bauruense que nos seus tempos áureos movimentavam o comércio, a vida social e esportiva do município.
Hoje, de acordo com o sindicato, a concessionária das antigas companhias mantém apenas 200 ferroviários em Bauru, uma quantidade bem distante dos 3.200 que chegaram a fazer da Noroeste, Paulista e Sorocabana o orgulho de Bauru e motivaram a inclusão das três estrelas no brasão de armas municipal.
Calçadão e figuras orientais comporiam o novo brasão
Se fosse elaborado agora, o brasão de armas de Bauru talvez teria um símbolo que remetesse aos países orientais, caso de China e Coréia do Sul, locais de origem da nova e principal leva de imigrantes que chega anualmente a Bauru.
De acordo com o agente da Polícia Federal Moisés Rossi, cerca de 100 imigrantes por ano solicitam visto no setor de atendimento a estrangeiros da delegacia da PF em Bauru, onde trabalha. Destes, próximo a 25% são chineses ou coreanos, os quais podem ser encontrados trabalhando no comércio central de Bauru.
O comércio, aliás, deveria estar retratado no novo brasão de Bauru caso este fosse criado, na opinião do cafeicultor Maurício Lima Verde. “Se fosse feito hoje, o brasão talvez não tivesse mais os dois pés de café, mas o Calçadão da Batista, já que agora a cafeicultura vive um péssimo momentoâ€, aponta.
No brasão, o calçadão - ou qualquer outro símbolo comercial - poderia representar alguns dos investimentos feitos pelos imigrantes quando estes conseguiram economizar seus primeiros quinhões como trabalhadores rurais.
“Vários imigrantes montaram comércio na cidade com o dinheiro que haviam juntado como trabalhadores das fazendas, caso do meu avô e seu cunhadoâ€, relata o memorialista Gabriel Ruiz Pelegrina, diretor do Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura e neto de espanhóis. Enquanto os espanhóis e portugueses investiam no comércio e dividiam espaço com os turcos vindos pela atração do movimento proporcionado pelas ferrovias, os italianos apostavam no ramo da construção civil e da hotelaria.
Apesar dessas contribuições, apenas os portugueses tiveram a honra de serem representados no brasão municipal por meio da coroa com as torres e o escudo ibérico, em razão de terem descoberto o território que posteriormente foi denominado como Brasil. Para o português Abel Fernando Marques Abreu, sócio-fundador da Associação Luso-Brasileira de Bauru, nada mais justo.
“O português é acostumado aos desafios cotidianos e nunca abandonou os seus desígnios. Com o passar dos lustros, cada qual foi-se destacando no seio da população bauruense, lutando com muito afinco e destemor por esta terraâ€, afirma Abreu, que também é delegado-assistente da Delegacia Seccional de Bauru.
Ramos de café lembram primeira riqueza agrícola
Os dois ramos de café que emolduram o brasão municipal retratam uma época em que a cafeicultura compunha uma parcela expressiva do PIB de Bauru.
Na década de 20, período em que o brasão foi criado, Bauru tinha a maior fazenda dessa cultura do mundo, a Val de Palmas, cujas áreas eram ocupadas por 7 milhões de pés de café. Hoje, a cefeicultura na cidade foi reduzida a 6% daquele montante, chegando a pouco mais de 400 mil pés.
“Depois do impulso da cafeicultura na década de 20, veio a crise de 1929 e a geada de 1975, que acabaram por desestimular muitos produtoresâ€, rememora o cafeicultor Maurício Lima Verde, presidente do Sindicato Rural de Bauru e membro da Organização Internacional do Café, com sede em Londres.
Hoje, apesar da esperada safra de 50 milhões de sacas para 2002, recorde em 270 anos de cafeicultura no Brasil, o grão não é considerado um bom investimento. “Porque o preço acompanha a ofertaâ€, explica Lima Verde.
Mesmo assim o cafeicultor não perde as esperanças de ver o café figurando entre as maiores riquezas agrícolas de Bauru. “Na agricultura, tudo é cíclico. E condições nós temos: terra e localização, além da economia globalizada, o que facilita muitoâ€, comenta o cafeicultor.
Somado a isso há a história da cafeicultura, cuja pujança rendeu visita e hospedagem do estadista Getúlio Vargas na fazenda Val de Palmas, e também o aspecto social. De acordo com Lima Verde, dois hectares de café exigem três funcionários por ano trabalhando. A mesma média só é alcançada na pecuária se houver 500 hectares de terra.
“A história da cafeicultura no Brasil faz do café uma palavra mágica no mundo todo. Em Bauru não é diferente. A maioria dos agricultores e pecuaristas daqui têm ascendência de cafeicultores, por isso os ramos estão no brasãoâ€, sustenta Lima Verde.
Além disso, mesmo com toda a redução de produção, o café da região de Bauru representa 25% do total produzido em solos paulistas.