Cultura

Filme não faz jus à épica grega

Por Cristina Rodrigues Franciscato* | Especial para o JC
| Tempo de leitura: 7 min

A Guerra de Tróia foi, por muito tempo, considerada um capítulo da mitologia grega. Hoje sabemos que Tróia existiu e que não faltaram razões políticas ou econômicas (motivação primeira de todas as guerras) para um conflito entre gregos e troianos.

A localização de Tróia na Ásia Menor (atual Turquia) era estratégica: ficava próxima ao estreito de Dardanelos que é passagem para o mar de Mármara e, de lá, para a atual Istambul, estreito de Bósforo e Mar Negro. Os gregos mantinham comércio com a região e é possível supor que os troianos exerciam algum tipo de controle sobre esse acesso à região do Mar Negro.

Mais inspiradora é a versão mítica: uma guerra de grandes proporções por uma mulher! Tudo começou no casamento de Peleu, simples mortal, com a deusa Tétis, quando os Olímpicos realizaram uma grande festa (é dessa união que nascerá Aquiles, o maior herói da Guerra de Tróia).

Todos os deuses foram convidados, exceto Éris, a Discórdia, que envia ao banquete um atraente pomo de ouro. A maçã é endereçada “à mais bela”. Imediatamente, três deusas apresentam-se para recebê-la: Hera, esposa de Zeus, Palas Atena, deusa da sabedoria, e Afrodite, divindade do amor, das paixões. Zeus envia Hermes, mensageiro dos imortais, e as deusas para o Monte Ida, região próxima de Tróia, onde um jovem deveria escolher a vencedora.

O jovem é Páris, príncipe troiano, filho de Príamo e Hécuba. Quando sua mãe estava grávida, sonhou que dava à luz uma bola de fogo. Era sinal de que a criança seria a ruína de Tróia. Ao nascer, Páris é abandonado à morte pelos pais, mas recolhido e criado por pastores. Mais tarde, sua identidade é revelada e ele é recebido, como príncipe, no palácio.

Enquanto isso, na Grécia, a beleza de Helena, filha de Zeus com a mortal Leda, atrai inúmeros pretendentes. Odisseu (Ulisses para os latinos) sugere que a própria princesa escolha um deles e que os outros não apenas acatem sua decisão, mas façam um pacto de apoiar o noivo, em caso de problemas. O escolhido é Menelau.

Voltemos ao proverbial “Pomo da Discórdia”. Na presença de Páris, cada uma das deusas faz-lhe uma oferta, caso seja a escolhida. Hera lhe daria o poder sobre a Ásia; Atena, a sabedoria e vitória nas batalhas, e Afrodite, o amor da mais bela mortal, quase tão bela quanto ela!

O príncipe escolhe Afrodite e a recompensa é Helena, então rainha de Esparta e esposa de Menelau. Páris vai para Grécia, rapta Helena e a leva para Ásia. O resultado é a Guerra de Tróia. Ela durou 10 anos e envolveu reis de toda Grécia, comprometidos pelo antigo pacto.

A narrativa acima não está presente no filme nem pertence à “Ilíada”, poema épico do século 8 a.C., o mais antigo da literatura ocidental, atribuído a Homero. Ela faz parte de uma obra perdida do ciclo épico, chamada “Kýpria” ou “Cantos Cípricos”, de autoria incerta, que contava episódios anteriores à Guerra de Tróia e que lhe deram origem.

Também não encontramos na “Ilíada” situações mostradas no filme, como a morte de Aquiles e a queda da cidade por meio do estratagema que deu origem à expressão “presente de grego”: os aqueus simulam partir e deixam em Tróia um enorme cavalo de madeira. Os troianos acreditam tratar-se de um “presente”: uma forma de selar a paz. O cavalo, repleto de guerreiros, é introduzido na cidade causando sua ruína.

Esses episódios eram parte de outros poemas épicos, hoje perdidos: “Etiópida” e “Pequena Ilíada”. Os vinte e quatro cantos da “Ilíada” concentram-se num fato ocorrido no décimo ano da guerra: a ira de Aquiles, seu rompimento com Agamêmnon, chefe do exército grego, e suas conseqüências funestas. Quando o poema termina, com os funerais de Heitor, maior herói troiano, a cidade de Príamo continua inexpugnável.

A saída de Aquiles da guerra tem sim relação com Briseida, mas não como mostra o filme. No começo da “Ilíada” temos duas cativas, adquiridas após a conquista de uma outra cidade da Ásia Menor: Criseida, que pertence a Agamêmnon e Briseida, espólio de Aquiles. Criseida é filha de um sacerdote de Apolo que a quer de volta. Agamêmnon recusa-se a entregá-la e ofende o sacerdote. Apolo manda uma peste que dizima o exército grego. O adivinho é consultado e diz ser necessário devolver a moça. Agamêmnon cede, mas toma Briseida de Aquiles.

O herói, enfurecido, sai da guerra e os gregos sofrem uma derrota após outra. A ira de Aquiles deve-se menos aos seus sentimentos com relação à Briseida, do que ao fato de ter a sua honra heróica desconsiderada.

Durante o poema, Agamêmnon tenta se retratar e fazer Aquiles voltar aos combates. Oferece inúmeros presentes, promete restituir-lhe Briseida e dar-lhe uma de suas filhas em casamento, assim que termine a guerra. Aquiles não aceita e só volta à batalha quando seu grande amigo Pátroclo é morto por Heitor.

Os mitos gregos apresentam muitas variáveis, mas o filme “Tróia”, em diversas passagens, não segue nenhuma fonte antiga e apresenta algumas distorções imperdoáveis: Menelau ser morto por Heitor durante a guerra; Agamêmnon por Briseida; Páris sobreviver e escapar junto com Helena, Andrômaca (esposa de Heitor) e seu filho. Isso para citarmos apenas as mais extravagantes.

O episódio do combate individual entre Páris e Menelau faz parte da “Ilíada”. Mas, quando o rei de Esparta está para derrotar o adversário, Afrodite entra em cena e resgata Páris, levando-o diretamente aos seus aposentos. Momentos depois, a deusa faz com que Helena vá ao encontro do príncipe e se entregue aos prazeres do amor.

Terminada a guerra, Menelau recupera a esposa e pretende matá-la, mas sucumbe ao ver seus seios desnudos. Então guarda a espada e leva Helena para casa.

Lá, o casal é encontrado, vivendo muito bem, quando na “Odisséia”, Telêmaco, filho de Odisseu, vai para Esparta a procura de notícias do pai. Helena é descrita como esposa dedicada. Agamêmnon, em nenhuma versão antiga, morre em Tróia, muito menos pelas mãos de Briseida.

Ele volta para Micenas onde é assassinado pela esposa Clitemnestra e seu amante Egisto. Páris realmente mata Aquiles com uma flecha, guiada por Apolo, que acerta seu único ponto vulnerável: o calcanhar. Isso acontece antes da tomada de Tróia. Também Páris é morto por uma flecha, disparada pelo herói Filoctetes.

Todas as mulheres troianas tornam-se cativas e são distribuídas entre os chefes gregos. Andrômaca é dada a Neoptólemo, filho de Aquiles, que não aparece no filme.

Seu pequeno filho é impiedosamente morto, sendo jogado das muralhas de Tróia. Os gregos temiam deixar vivos os filhos de inimigos valorosos.

O eixo do filme parece ser o amor, nada convincente na tela, entre Páris e Helena. Mesmo esse ponto não é fiel à versão homérica. Na “Ilíada”, Helena aparece pela primeira vez no Canto 3, onde Páris é severamente criticado por Heitor, pois foge do combate, pálido, ao ver Menelau.

É então que, em contrapartida, Páris propõe um combate individual com o rei de Esparta. Helena é avisada e demonstra sentir falta do primeiro marido e da pátria. Quando Afrodite retira Páris do combate precisa coagir Helena a ir encontrar-se com ele. A princípio, ela se recusa a compartilhar o leito de Páris e o provoca dizendo que, não fosse a deusa, ele seria derrotado por Menelau.

Depois, no Canto 4, Helena revela seu descontentamento com Páris (vv.344-359): preferia ter morrido antes de causar tantos infortúnios, mas já que os deuses determinaram esses acontecimentos, que pelo menos ela estivesse com homem de mais brio e de autêntica têmpera heróica. No Canto 4 da “Odisséia”, Helena mostra-se, como já mencionado, esposa gentil e prendada. Está arrependida pelo que fizera, instigada por Afrodite.

Feitas essas ressalvas e contornada a frustração de assistir um filme que nem de longe faz jus à épica grega, não deixa de ser esperançoso ver a Guerra de Tróia no cinema. É um meio de levar o tema a muitas pessoas que, talvez, nunca tenham ouvido falar dele, em especial adolescentes, e, quem sabe, inspirar o desejo de saber mais. O filme pode despertar novos leitores para Homero e maior interesse pelo riquíssimo universo do mito grego. Que os deuses sejam favoráveis!

* Jornalista, doutoranda em Literatura Grega Antiga pela FFLCH-USP e tradutora da tragédia “Héracles”, de Eurípides (Editora Palas Athena).

Comentários

Comentários