Crânio disforme; queixo alongado, semelhante ao de um macaco; cabeleira desgrenhada e um tanto grisalha; olhos cerrados, lábios costurados com uma espécie de fibra; o rosto enrugado possui espécie de serenidade duradoura e inquebrantável que só os mortos são capazes de transmitir. Como um objeto que tem mais ou menos o tamanho de um punho humano pode provocar tanto medo, perplexidade e repulsa nas pessoas? Talvez porque as cabeças em miniatura representem a morte escancarada, a materialização de um gesto extremo de violência do homem contra o homem.
O Museu Histórico Pedagógico “Índia Vanuíre”, em Tupã (182 quilômetros de Bauru), conta com dois desses macabros artefatos em seu acervo. O mais antigo chegou ao local há mais de três décadas, por intermédio de Nair Ghedini, esposa do fundador da instituição, Luiz de Souza Leão.
Ninguém sabe ao certo como a cabeça foi parar no museu. A única certeza que os funcionários têm é que ela foi adquirida por Nair em um leilão ocorrido na Capital. Como, porém, não há registros oficiais da existência de tribos de “encolhedores de crânio” na Terra da Garoa, é muito provável que o artefato tenha vindo do Equador ou do Peru.
Isto por porque os dois países andinos são o lar dos shuaras, membros de uma tribos indígenas mais isoladas da região amazônica. Antes mesmo de os espanhóis chegarem ao local, os integrantes da etnia já demonstravam ser bastante um povo bastante arredio.
Por volta de 1470, durante expedição a uma área situada entre as atuais fronteiras do Peru e do Equador, os soldados do imperador inca Túpac Yupanqui teriam ficado chocados após entrarem em contato com os shuaras. Além de se mostrarem ferozes combatentes, tinham o hábito de decapitar os inimigos vencidos e reduzir suas cabeças até ficarem menores que os seus punhos.
Essa sensação de repulsa iria se repetir entre os colonizadores espanhóis, que chegaram à região no século seguinte. A fama dos shuaras se tornou tão grande entre os conquistadores, que os integrantes da tribo passaram a ser designados popularmente pela expressão pejorativa “jívaros”, que em português que dizer “selvagens”. Tudo por causa das benditas cabeças em miniatura.
Por muito tempo, as técnicas de encolhimento permaneceram um mistério para os europeus. A partir do século 19, porém, expedições de pesquisa começaram a estabelecer os primeiros contatos com os shuaras.
O estudiosos chegaram então à conclusão de que as cabeças encolhidas são resultado de um método original de mumificação desenvolvido pelos índios. Após uma batalha, os guerreiros shuaras saíam recolhendo os cadáveres dos inimigos que havia conseguido matar.
Depois, a cabeça era separada do resto do corpo na altura do tronco. Um incisão era feita na parte posterior do crânio; pele, cabelos e bigodes (ou seja, tudo o que ajuda a formar a expressão de um rosto humano) eram separados dos ossos e dos músculos. O couro era então limpo e mergulhado em uma vasilha contendo água fervente e extratos vegetais, onde permanecia durante horas.
Por fim, a pele era deixada ao sol para secar. Pedras quentes eram postas em seu interior, para conferir uma forma arredondada ao artefato. Uma espécie de prega de madeira era colocada na boca da cabeça para impedir que o objeto sofresse deformações.
O processo de encolhimento costumava durar seis dias; ao sétimo, a aldeia celebrava uma grande festa ritual chamada tzantza, nome pelo qual também são denominadas as cabeças encolhidas na língua shuara.
Concluído o processo de mumificação, as cabeças eram colocadas na ponta de um bastão e usadas como amuletos; ou então, presas aos mantos dos guerreiros, como sinal de valentia. Além do exemplar obtido por Nair Ghedini, o Museu “Índia Vanuíre” conta com outro artefato do gênero, recebido do Governo do Estado na metade dos anos 90.
Como, atualmente, o museu passa por reformas, por enquanto o público não vem tendo chance de ficar frente a frente com as cabeças reduzidas. Os responsáveis pela instituição, que é mantida pela Prefeitura de Tupã, acreditam que as obras estarão prontas em outubro deste ano.
Além das cabeças encolhidas, o museu conta em seu acervo permanente com peças de artesanato indígena e fotos das tribos que habitavam a região oeste de São Paulo (os caingangues, em especial).
• Serviço
O Museu “Índia Vanuíre” fica na rua Chavantes, 692, Centro, Tupã. O prédio está em reforma e o local não está recebendo visitantes. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (14) 3491-2202.
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Comércio
Na medida em que os espanhóis se estabeleceram em definitivo na América do Sul, conseguiram subjugar muitas das tribos que habitavam a região. Embora ainda mantenham um certo isolamento com relação ao dito mundo “civilizado”, os shuaras não fugiram à regra e passaram a travar contatos mais freqüente os brancos.
Com isso, as cabeças reduzidas, que tanto medo e repulsa provocaram nos conquistadores, passaram a atrair o interesse dos brancos, principalmente os turistas que visitavam o Peru e o Equador.
Nos anos 60, as “shrunkens heads” se converteram em verdadeira febre entre os jovens da Califórnia. As cabeças passaram a ser usadas como chaveiro, como amuleto da sorte e até como enfeite para carros.
Mais ou menos por essa época, uma história macabra envolvendo as cabeças encolhidas passou a circular pela imprensa mundial. Os relatos davam conta de que a procura pelos artefatos teria crescido demais, razão pela qual os shuaras já não eram mais capazes de atender à procura pelo “produto” - até porque as guerras intertribais eram raras de ocorrer.
Na falta de cadáveres de guerreiros valorosos, alguns comerciantes mais “espertalhões” resolveram apelar para a criatividade: passaram a encolher os crânios de viajantes desavisados. O tráfico de cabeças ganhou notoriedade no mundo todo. Nas aldeias mais isoladas do Equador e do Peru, as pessoas passaram a evitar as ruas mais desertas, com medo de se tornarem vítimas dos mercadores de crânios.
Os governos dos dois países viram-se obrigados a proibir a venda do artefato. Hoje em dia, pelo equivalente a US$ 50,00, é possível se adquirir réplicas de “shrunken heads”, só que feitas em couro animal.