Comunicar talvez seja o verbo mais indicado para definir Lucius de Mello, se é que dá para definir um ser humano em uma única palavra. Mas a ação desse verbo indica exatamente o que Lucius faz desde bem jovem. Ainda no segundo ano da faculdade de jornalismo, o repórter já se destacava profissionalmente no SBT de Curitiba. Se formou e veio morar em Bauru para trabalhar na, então, TV Globo Oeste Paulista.
Do jornalista nascia o escritor. Foi em meio às “aventuras” como repórter que surgiu inspiração para sua primeira obra literária,“Um Violino para os Gatos” (1995), e que ele se interessou por pesquisar a vida de Eny. Dez anos depois do início das pesquisas, “Eny e o Grande Bordel Brasileiro” (2002) foi lançado e rendeu ao escritor um lugar na disputa final do Prêmio Jabuti na categoria reportagem/biografia. Além disso, o livro, que conta a história da dona de um dos bordéis mais famosos do País, impulsionou seu nome no cenário da literatura nacional.
Com o livro “A Travessia da Terra Vermelha” (2007) surgiu o convite para integrar a equipe de pesquisadores do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER) da Universidade de São Paulo (USP).
Já realizado como repórter e com o intuito de deixar esse rótulo de lado para ser reconhecido como Lucius escritor, ele aposentou o microfone e trabalha, atualmente, como roteirista no programa “Hoje em Dia” da TV Record.
A biografia de Eny e demais obras, trabalho e aventuras como repórter e pesquisador e sua relação com Bauru fazem parte da entrevista que Lucius de Mello concedeu ao Jornal da Cidade. Leia os principais trechos.
Jornal da Cidade - Qual foi a sua primeira obra literária? Lucius de Mello - “Violinos para os gatos”, que foi um livro escrito na época em que eu morava em Bauru. São oito contos inspirados em fatos que vivenciei. Por exemplo, certa vez fiz uma reportagem em uma fazenda, me encantei com o cenário e o transformei em conto. O bacana desse livro foi que o lancei nas obras da construção do Teatro Municipal de Bauru. Glorinha Reis era dona de uma livraria na cidade e sugeriu que fizéssemos uma homenagem à construção do teatro fazendo o lançamento no meio do canteiro de obras. Iluminamos o cenário com candelabros e colocamos um violinista tocando na entrada da construção.
JC - Quando você morou em Bauru? Lucius - Me mudei para a cidade em 1988 para trabalhar na TV Globo Oeste Paulista e no ano seguinte já comecei a pesquisa sobre Eny. Quando lancei o “Violino”, eu já pesquisava Eny. O que me impressionou foi que, quando cheguei aqui, um ano depois da morte dela, muitas pessoas estavam de luto e falavam com muita tristeza sobre sua morte. Muitos chegavam até mim, em bares por exemplo, e me perguntavam se eu a conhecia, como se ela fosse uma atração turística. Então, fui colhendo informações e percebi que aquela história não era para ser feita como uma reportagem de televisão porque era muito rica em detalhes. Fiquei dez anos pesquisando porque não tinha tempo para me dedicar exclusivamente e tirei quatro férias para escrever o livro.
JC - Como foi fazer a pesquisa? Lucius - Como disse, foram dez anos porque eu não tinha tempo. Caso contrário, a faria em uns três anos. Eu viajei para o Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, entre outras cidades para localizar ex-funcionários, ex-prostitutas e parentes da Eny. Contratei uma estagiária da Universidade do Sagrado Coração (USC) que fez uma pesquisa intensa nos arquivos do Jornal da Cidade e no Diário de Bauru. Relacionei a personagem com os fatos nacionais. Por exemplo, no ano de 1950, o que aconteceu no Brasil? Quais eram as paradas de sucesso das rádios? (Já que as prostitutas estariam ouvindo no bordel) Quais filmes faziam sucesso nas matinês dos cinemas? (Eny levava as meninas para ver os filmes). Então, tive que fazer uma pesquisa toda detalhada e contextualizada.
JC - Você deve ter se deparado com fatos intrigantes sobre a vida de Eny... Lucius - Claro que foram muitos fatos, mas o lado filantrópico dela me impressionou bastante. Eu acho que, por saber que era apontada nas ruas como “a mulher do pecado”, ela tinha a necessidade de, de repente, fazer as pessoas “morderem a língua”. Se era o pecado, por outro lado era o amor e a fraternidade, e ela conseguia mostrar isso. Enterrava mendigos e os miseráveis que morriam e a família não tinha dinheiro para o funeral, acolhia muitas meninas que perdiam a virgindade antes do casamento e eram expulsas de casa pelos pais. Outra coisa que ela fez muito foi adotar crianças de prostitutas e “dá-las” para famílias cuidarem, porém, ela pagava todos os gastos da criança. Ela também fazia grandes doações para campanhas de instituições.
JC - Como foi concorrer ao Prêmio Jabuti? Lucius - Foi muito engraçado porque na época em que saíram os dez indicados, havia a biografia de Cacilda Becker e a de Fidel Castro, entre outras. Quando eu vi, disse para mim mesmo que teria que me contentar em ficar entre os dez indicados porque entre os três primeiros eu não ficaria. Pensei isso achando que não dariam valor à história de uma cafetina já que tinham a biografia de uma grande atriz e de grandes personagens da história. Porém, o livro da Eny chegou à final e o da Cacilda Becker, não. O que estava em jogo era o trabalho do escritor e não a vida do biografado. Isso mostrou que os jurados não foram preconceituosos e analisaram o trabalho em detalhes.
JC - Concorrer a esse prêmio deve ter impulsionado sua carreira de escritor. Lucius - Eu costumo dizer que se hoje os meus novos livros estão na gôndolas das livrairas, eu devo isso a Eny, pois o livro “Eny e o Grande Bordel Brasileiro” me projetou nacionalmente e me colocou na lista dos mais vendidos. Meu último livro, “Mestiços da Casa Velha”, por exemplo, na última semana esteve entre os lançamentos importantes da literatura contemporânea na livraria Cultura Conjunto Nacional. Meu livro estava entre autores consagrados e isso me deixou muito feliz, já que é um livro que ainda não foi muito vendido nem teve grande sucesso como o da Eny. Se o livreiro ou o dona da livraria destacam meus livros, eu acho que é porque eles lembram do sucesso que fiz com a Eny.
JC - Quais são as suas outras obras? Lucius - A ordem cronológica dos meus livros é: “Um Violino para os Gatos” (1995), “Eny e o Grande Bordel Brasileiro” (2002), “A travessia da Terra vermelha” (2007) e “Mestiços da Casa Velha” (2008).
JC - Quando surgiu o seu desejo pela escrita? Lucius - Ah, desde menino. Lembro-me que quando eu tinha 12 anos de idade, estudando no ensino fundamental, eu já ensaiava em escrever meu primeiro romance. Procura meu professor de língua portuguesa e dizia que estava escrevendo e ficava lá criando as história que, hoje, nem sei onde foram parar, mas que guardei por um tempão. Para você ter idéia, eu fiz faculdade de jornalismo porque queria ser escritor e pensei algo parecido, já que eu não poderia viver de escrever livros. Sempre quis levar a profissão de escritor paralela à outra. Muitos escritores como Machado de Assis, Clarice Lispector, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, tiveram outras profissões enquanto escreviam.
JC - Quais são as suas influências literárias? Lucius- Machado de Assis é um mestre para mim. Admiro a originalidade e a forma como ele conversa com o leitor em suas histórias. Eu ando com as obras dele. É como uma “bíblia” para mim e sempre que tenho tempo dou uma lidinha. Também gosto muito do Gabriel Garcia Marques, Marcel Proust e Clarice Lispector, entre outros.
JC - Fale sobre o LEER. Lucius - Sou pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER) que é ligado ao Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). Escrevi o livro “A travessia da Terra vermelha”, um livro que trabalho com racismo quando fala da perseguição que os judeus sofreram na 2ª Guerra Mundial por Hitler, e esse trabalho que demandou quatro anos de pesquisas na própria Alemanha, foi baseado em duas teses acadêmicas sobre refugiados judeus. Porém, eu avancei tanto nas pesquisas que fui convidado a integrar a equipe. Participo de jornadas e congressos para falar sobre e apresentar minhas pesquisas realizadas.
JC - Você deve passar por muitas aventuras quando realiza as pesquisas para os livros. Lucius - Muitas! Por exemplo, o que eu corri atrás do último amante da Eny (um coronel) e ele não me atendia. Eu fiquei com as cartas, fotos e cartões de amor dela. Ela não teve muitos namorados. Teve poucos, mas intensos. Foi uma romântica.
JC - Eny vai virar filme? Lucius - Então, o projeto foi comprado pela produtora Casablanca mas está arquivado. Não sei se vai ser lançado e quando.
JC - Qual é a sua relação com Bauru atualmente? Lucius - Minha mãe mora aqui e venho sempre visitá-la. Meu avô tinha comércio na cidade e, mesmo quando morava em Bariri, estava sempre em Bauru. Mais tarde, me mudei para cá para trabalhar na TV Globo.
JC - Como foi sua trajetória como jornalista? Lucius - Quando eu estava no segundo ano da faculdade, na Universidade Federal do Paraná (UFPR), senti vontade de aprender o trabalho de repórter na prática e fui trabalhar de graça por seis meses no SBT. Depois, surgiu a vaga e ingressei no time de repórteres da emissora, ainda na faculdade. Quando me formei, já tinha dois meses de experiência como repórter de TV e mandei uma fita para a Globo aqui de Bauru, onde fiquei por 14 anos. Depois, fui para São Paulo e trabalhei novamente no SBT, Fundação Roberto Marinho (no canal Futura), TV Cultura e, hoje, sou roteirista do programa “Hoje em Dia” da TV Record. Procurei a faculdade de jornalismo para trabalhar na TV, nunca pensei em outra coisa.
JC - Não acha que chega a ser contradição, já que disse ter cursado jornalismo para estar próximo da escrita? Lucius - É verdade! Mas também entra a coisa da teledramaturgia, essa coisa toda de escrever novelas e minisséries que me atraem muito. Mas, hoje, quero trabalhar apenas nos bastidores porque pretendo que minha imagem seja associada à de escritor e não repórter. Por exemplo, no “Hoje em Dia” eu posso trabalhar com texto e acho um trabalho muito gratificante.
JC - Dá para separar o Lucius jornalista do escritor? Lucius - Acho que não! O escritor e o jornalista, apesar de um trabalhar com a ficção e o outro com a realidade, apresentam a fronteira muito tênue e relativa hoje. Como jornalista e escritor, eu aprendi a ver as coisas por outro ângulo. Você acaba conseguindo ver o que as outras pessoas não vêem. Gosto de contar a história de quando fui cobrir uma exposição de ovelhas em Lençóis Paulista. Há cinco anos eu fazia a mesma coisa, não agüentava mais. Então, perguntei para o pessoal lá qual era a novidade para o ano e descobrimos que havia um curso de pastores de ovelhas. Acompanhamos e produzimos imagens lindas em uma fazenda que estava fazendo esse resgate bíblico. Havia um pastor que parecia ter saído do Velho Testamento, com barba e cajado. A matéria ficou tão original que foi o “boa noite” do Jornal Nacional.
JC - Você se sente realizado profissionalmente? Lucius - Ainda não! Falta escrever meu melhor livro. Sou feliz dentro do que vivo e consegui, mas realizado seria se não tivesse mais nada a sonhar.