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Um beija-flor pousou em minha mão


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A pergunta era: "O que foi bom para você neste ano?" Dentre as respostas, uma me comoveu pelo inusitado e poético: "Um beija-flor pousou em minha mão". Não guardei o nome de quem pronunciou tão belo decassílabo. Lembro-me vagamente da foto de uma senhora, ilustrando a matéria: rosto compenetrado, reflexivo, sereno. O verso, de muita singeleza, pareceu-me dizer muito mais do que simplesmente sobre um pássaro a pousar na mão de uma senhora. A mim, pareceu-me revelar a alma desta senhora, de sua suavidade, de sua ternura.

Pus-me, então, a fazer conjecturas sobre quem seria uma alma assim, tão rica de um lirismo tão puro. E, imaginando conversar com ela, assim num esboço fantasioso, mas possível, como uma aquarela, um desenho de um ideal desejável, dirijo-lhe a palavra:

"- A senhora deve ter alma de nuvem, e deve haver lá em alguma gaveta seus versos, outros. É, portanto, poeta. Não os tendo, é poeta do mesmo modo. A poesia está em sua alma, pois quem diz um verso assim, tem muita poesia a derramar por esse mundo. Onde quer que a senhora esteja neste momento, deverá por certo estar fazendo doces a quem estima, ou bordando uma toalha para o vaso sobre a mesa, ou mesmo olhando a paisagem, olhando por olhar, os olhos distantes, distraídos. Se for dia, deve estar contemplando borboletas esvoaçantes no jardim. Se for noite - a noite tem muitos segredos ? deverá estar tramando um arco-íris para o dia seguinte. É que hoje à tarde choveu, a senhora deve ter tomado algum chuvisco, preocupada em recolher a roupa do varal. Certamente, nem se importou, na esperança de que no dia seguinte brotasse um céu azul, porque nas almas mansas há sempre um desejo de sol.

Assim, minha senhora, num mundo de tamanha violência, surpreende-nos alegremente a singeleza de sua resposta que aqui repriso: Um beija-flor pousou em minha mão. Tão simplesmente um decassílabo. Mas tão encantador que nos leva a pensar que o mundo não está de todo perdido. Resta no ar ainda alguma leveza, algum sonho que possa ainda ser sonhado. Resta, principalmente, minha senhora, a crença no próprio homem, como um ser nobre, elevado, diferente dessa banalidade cotidiana em que nos metemos em busca pura e simplesmente da sobrevivência.

A senhora poderia - como outros o fizeram - ter dado outras belas respostas, tais como ter conseguido manter-se no emprego, ou mesmo ter conseguido um, ou ter ganhado um sapato com o qual sonhava. Mas o que a senhora fez foi lembrar-se de uma fragilidade indefesa a buscar abrigo em suas mãos. Fico imaginando o encantamento de se ter um passarinho pousado na palma da mão. Lembra-me São Francisco de Assis, tão do passado.

Mas é por isso que a cena invocada pela senhora é extremamente poética. Se o ser humano, precisando desenvolver-se constantemente, busca o novo, pois que o novo sempre lhe acrescenta um algo mais, há que se pensar que o velho esquecido pode ser tão novo quanto o próprio novo. Muito do antigo que não seja degenerado, caduco, pode encerrar uma considerável parcela de experiência acumulada que, por desejável à dignidade humana, não podemos desprezar, sob pena de, em nome da modernidade, nos tornar frios, insensíveis, extremamente práticos, de uma praticidade imbecil, que nos rouba o calor humano, nos rouba de nós próprios o que temos de mais nosso: nossa alma.

Saturados que estamos de modernidades, minha senhora, talvez que uma volta ao passado nos traga valores deixados de lado, tais como a ternura, o afago, o prazer de viver em comunhão com outros e com o universo. Sua frase, minha senhora, é um convite a que resgatemos valores perdidos como a modéstia, a humildade, a paciência, a ternura, a delicadeza, a alegria dos pequenos e mínimos gestos, como o de acolhermos na palma da mão um pequenino e frágil beija-flor.

Imagino que o beija-flor que esteve em sua mão, minha senhora, esteve apenas por alguns segundos, o tempo de a senhora se encantar com ele, e depois ter voado para distante, que o destino dos pássaros é voar sempre, nos ensinando o caminho das alturas.

Que seu gesto, minha senhora, nos sirva de inspiração para irmos, cada vez mais, em busca de algo maior, porque certamente deve haver em nós algo maior, algo como um sopro de vida que esteja além da nossa própria respiração.

Obrigado, minha senhora, por essa simplicidade encantadora."

O autor, Luiz Vitor Martinello, é colaborador de Opinião

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