A Bauru que amanhã celebra 115 anos não foi construída por simples "obra da natureza". Muita gente contribuiu para o crescimento e consolidação da principal cidade no centro do Estado de São Paulo.
De uma maneira particular, entre os expoentes de diversas áreas, o médico e poeta Olegário Bastos, é exemplo de como se contribuir com a comunidade onde vive não apenas atuando dentro dos limites profissionais, mas sim com paixão pelo trabalho, ou melhor, trabalhando com paixão, em diversos flancos de atuação.
Quando deixou a pequena Mandiroba, no sertão baiano, às margens do "Velho Chico", ainda nos anos 1940, para concluir os estudos na capital Salvador, Olegário Laranjeira Bastos traçava as primeiras linhas de uma trajetória recheada de episódios de pioneirismo, criatividade e, acima de tudo, companheirismo.
Primeiro médico anestesiologista de Bauru, atestam colegas de jaleco tanto das antigas quanto da atual geração, mas que conviveram e aprenderam com ele, Olegário Bastos fez história - e estórias - em Bauru entre as décadas de 1950 e de 2000, quando retornou para o Estado natal, onde faleceu há pouco menos de quatro anos.
Referência entre as equipes médicas tanto do Hospital de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (Centrinho/USP) quanto da Beneficência Portuguesa, ambos em Bauru, o especialista transcendeu o destaque no campo médico e tornou-se ícone literário da cidade. Autor de poesias e contos, lançou "Poesia e Prosa", em 1980, e 15 anos mais tarde, publicou "Ensaios, Contos & Crônicas".
A veia literária de Bastos ganhou admiradores e também saltou o perímetro da Cidade Sem Limites, incluindo o Estado de origem de Olegário e gente mais do que conhecida na "Boa Terra". Entre eles, o ex-governador soteropolitano Antônio Carlos Magalhães e o célebre jurista e também escritor Saulo Ramos.
No entanto, mais do que gente famosa ou com cargos importantes, o médico baiano de nascimento e bauruense por adoção e coração, gostava mesmo era de gente, recordam admiradores.
Nos centros cirúrgicos, rodas literárias ou mesmo numa corridinha pela avenida Nossa Senhora de Fátima, o fino trato que dispensava, sem distinção aos demais, fez da baianidade de Olegário alvo do carinho dos bauruenses de diferentes gerações.
"Doutor Olegário tratava todos com muito carinho. Uma saudação comum era ?oi minha flor?", lembra com carinho a jornalista e assessora de imprensa do Centrinho, Elaine de Sousa.
Especialista foi pioneiro em anestesia em Bauru
Antes da vinda de Olegário a Bauru, anestesiar pacientes era tarefa de auxiliares, geralmente apenas na base de máscaras inaladoras, lembram cirurgiões ainda na ativa, "Ele foi o primeiro médico a exercer a especialidade como única atividade", destaca o médico anestesiologista Gil Dias Negrão Júnior, que trabalhou ao lado de Bastos durante 22 anos.
Olegário, que hoje dá o nome aos serviços de anestesia tanto do Hospital Beneficência Portuguesa quanto do Centrinho/USP, recordam os colegas que hoje formam uma equipe de 14 anestesistas, após uma rápida passagem por Piratininga, estabeleceu-se em Bauru, onde começou um trabalho que hoje é padrão na maioria dos hospitais.
Contudo, nos idos de 1956, quando ele começou o trabalho na Beneficência, anestesiologista médico, que avaliava detalhadamente as características do paciente no pré-operatório, era coisa rara. "Foi um dos primeiros médicos a escolher a anestesia como especialidade, um dos primeiros do Brasil", completa o médico Negrão Júnior.
"Antigamente, enfermeira ou até freira, na Beneficência, ficava encarregada da anestesia", observa o também anestesiologista Carlos Miyahara, do Centrinho. "Foi ele quem estabeleceu a consulta, a avaliação pré-anestésica. Um dos primeiros do Interior de São Paulo, iniciativa dele."
Especializado na França, o baiano-bauruense ainda representou o Brasil no primeiro congresso mundial de anestesiologia. Fundador do serviço de anestesiologia do Centrinho, ganhou notoriedade mundial, assim como a própria instituição hospitalar, referência no atendimento a pacientes com anomalias crânio-faciais.
"Ele é reconhecido nacional e internacionalmente pela excelência no atendimento anestésico prestado aos pacientes com anomalias de crânio e face. Realmente, foi um homem à frente de seu tempo. Tinha no exercício da anestesiologia não um trabalho, mas sim um ministério. Não se enxergava fazendo outra coisa", enaltece Gil.
Olegário permaneceu na ativa até os 80 anos. Prestes a se aposentar, recebeu a sugestão de aliar as veias literária e médica numa obra só. Contudo, lamentam colegas, Bastos preferiu curtir a aposentadoria na Bahia, onde faleceu após complicações respiratórias, decorrentes de um câncer na próstata.
"Tínhamos a noção de diferentes fases da história da anestesia conversando com o doutor Olegário", salienta o também colega, amigo e aprendiz, Paulo Grossi. "Cheguei a falar com ele, antes dele parar de trabalhar, que era necessário que escrevesse livros, não técnicos, mas usando a história que possuía da anestesia. Infelizmente, ele não ficou interessado. Mas seria fantástico um livro, com a vivência dele em anestesia. Ele tinha muita e, ao mesmo tempo, estava sempre atualizado", valoriza o médico.
Baiano com ?jeito bauruense?
Entre colegas de jaleco contemporâneos, ao tempo em que anestesistas especializados eram raridade, ainda mais nas cidades do Interior, o médico oftalmologista Ruy Bertoli destaca o "jeito bauruense" do baiano Olegário Bastos. "Ele gostava muito de futebol, acompanhando os jogos dos times da cidade e não abria mão de um cooper pela avenida Nossa Senhora de Fátima até a estrada (Marechal Rondon). Era amigo de todos e um mestre da oratória", destaca.
Torcedor botafoguense, Olegário, lembra o memorialista e editor do suplemento Bauru Ilustrado, do JC, Luciano Dias Pires, não perdia a oportunidade de se divertir com torcedores de clubes rivais. "Ele brincava muito comigo por causa do Corinthians", remonta o simpatizante do alvinegro paulista.
Bastos transferia para a máquina de escrever toda a simplicidade com a qual tratava a todos no dia a dia.
Com alta dose de sensibilidade, os contos traduziam nuances do cotidiano vivido pelo autor, seja em Bauru - lembrada em conto como a "Cidade Sem Limites", onde Olegário credita a alcunha ao seu devido autor, o poeta Euzébio Guerra - ou de uma divertida caravana de pescaria.
Fã de aventuras pelo Pantanal, o médico costumava viajar, segundo Ruy Bertoli, no extinto trem de passageiros da antiga Noroeste do Brasil (NOB), até o Mato Grosso, onde se divertia seja na pesca ou na contemplação da exuberante natureza do paraíso ecológico. "A revoada de aves pantaneiras começa. Por sobre nós, que descemos o rio, centenas de biguás voam à baixa altitude. Ouvimos o farfalhar de suas penas em voo raso, tocando a ponta das asas na flor das águas...", descreve, no conto Pantanal, parte da obra "Ensaios, Contos & Crônicas".
Verso e prosa em ?precisão cirúrgica?
Chefe do serviço de anestesiologia do Centrinho/USP por 40 anos, Bastos orgulhava-se do trabalho junto aos pacientes com malformações ou complicações no aparelho respiratório, crânio e face. "Com um público tão especial e complexo, nossa equipe precisou se especializar cada vez mais para realizar a administração ideal da anestesia e reduzir riscos existentes durante os procedimentos anestésicos", disse Olegário, pouco antes de se aposentar, ao jornal Nosso Mural, publicação interna produzida pela assessoria de imprensa do Centrinho.
Mas outro motivo de orgulho para Bastos sempre foi a literatura e a paixão por escrever. Apesar de não transferir para as linhas a vivência médica, ele não economizou na prosa e verso.
Membro da Academia Bauruense de Letras, colecionava leitores também em meio a quem está acostumado a trabalhar com as palavras. "Era um intelectual como poucos, dono de uma fina veia irônica, num estilo elegante tanto na poesia quanto na prosa", analisa o jornalista Zarcillo Barbosa, que destaca o convite que Bastos fazia a todos os tipos de leitores.
Com um estilo leve, Olegário conseguia prender a atenção tanto de leitores nem tão assíduos quanto dos mais eruditos, observa Zarcillo, com uma "precisão cirúrgica" na hora de "costurar" as frases e palavras nas obras que assinava. "Ele escrevia num ritmo que, as vezes, muito leitor nem percebe, mas ele é levado. Além de tudo, era uma pessoa muito cativante. Em nossos papos, sempre o ouvi com muita atenção", valoriza.
A oratória também era um capítulo a parte. "O Olegário falava muito bem, era um indivíduo muito bem articulado", destaca o também médico e cunhado José Sérgio Machado Neto, irmão de Maria Jorgina Machado, falecida em Bauru, mãe dos quatro filhos de Bastos - Jaime, Olegário Júnior, Clóvis e Fernando -, todos bauruenses de nascimento e que hoje moram na Bahia, onde Olegário escreveu os capítulos finais de sua vida. "Eu sou eu mesmo. Intimamente um poeta, nasci num grotão da Bahia, em meio à natureza...E cultivo muito a poesia, enaltecendo "Nosso Senhor Castro Alves" e a literatura universal de Fernando Pessoa", despediu-se, em entrevista também à assessoria do Centrinho, já na condição de aposentado, em Salvador.