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Palmadinhas no bumbum

Zarcillo Barbosa
| Tempo de leitura: 4 min

O castigo físico como método pedagógico sempre foi totalmente aceito na sociedade brasileira. No início da colonização, o padre José de Anchieta usava uma "vara de metal" para ensinar catecismo aos índios, e recomendava: "Amar é castigar e dar trabalhos nesta vida. E vícios devem ser combatidos com açoites e castigos". Para surpresa dos jesuítas, os índios não tinham o costume de bater nos filhos. Lembro-me que minha mãe usava um chinelo macio, recheado de algodão entre a sola e a palmilha. A gente berrava com dores fingidas. Mesmo assim ficava a lição de que o errado não deveria se repetir. Mamãe dizia que Deus nos deu bumbuns carnudinhos, que é o lugar reservado aos castigos merecidos. Na semana que acabou foi aprovada pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados a chamada Lei da Palmada. Visa reforçar o controle da Justiça sobre casos de violência contra crianças. O Estatuto da Criança e do Adolescente, que é a lei vigente, cita apenas "maus-tratos". O governo Lula, quando enviou o projeto ao Congresso tinha a ilusão de coibir toda e qualquer violência contra os menores de idade. O próprio Lula apanhou muito do pai e disse que "beliscão dói", razão de ter se comprometido a patrocinar a idéia.

A intenção é boa, mas a nova lei antipalmada levanta uma série de questionamentos de ordem legal e cultural. Em primeiro lugar, para combater castigos severos, a lei é redundante. O Código Penal e o Código Civil já contêm artigos que punem maus-tratos. No ano passado foi presa a procuradora de Justiça carioca Vera Gomes que agredia, com requintes de crueldade, a menina de dois anos que estava sob sua guarda. Uma empresária goiana também foi presa por torturar uma adolescente "pega para criar". Há outros tipos de violência mais sutis, como a pressão psicológica, a agressão verbal, a chantagem emocional e a expectativa exagerada sobre os filhos que se sentem um "fracasso" se não passarem de ano ou o vestibular. Essas coisas podem causar tanto sofrimento quanto a agressão física.

A dúvida a ser esclarecida por quem de direito é se o governo quer interferir nos lares familiares a ponto de oferecer punição a pais que derem algumas palmadas em seus filhos, sejam quais forem os motivos. E o governo, quem punirá pela falta de educação de qualidade que oferece aos brasileiros? Mesmo com a lei em vigor, nenhum pai vai mudar sua forma de educar, de acordo com os preceitos passados de geração a geração. Quem vai pagar o pato serão os mais pobres, como sempre. As violências que acontecem no interior dos lares mais abastados são facilmente abafadas. Punir o pai ou a mãe que castigou o filho poderá tirar o respeito e a autoridade (não confundir com autoritarismo) dos pais. Em países como a Inglaterra os psicólogos consideram que a criança de até cinco anos não tem plena capacidade intelectual para entender conceitos abstratos. A linguagem corporal é muito mais direta e clara que a verbal. Pode ser a mais adequada em alguma situação. A criança que leva tapa na mão porque insiste em querer enfiar o dedo na tomada vai entender mais facilmente o que não deve fazer, do que qualquer explicação sobre os efeitos do choque elétrico. Na Inglaterra os pais ainda têm o direito de bater com força moderada em seus filhos, contando que não deixem marcas ou manchas roxas. É um parâmetro. Cada julgador terá uma maneira de encarar o fato dentro do seu contexto. Hoje vemos juízes da Infância e da Juventude retirando da guarda da mãe crianças obesas, ou anêmicas e até porque têm assaduras no bumbum. Filhos de mães pobres, evidentemente... Como se a falta de dinheiro para comprar Hipoglós fosse crime. Se essa futura lei (ainda terá que passar pelo Senado) vai "pegar", ninguém sabe. A própria ECA ainda não foi totalmente absorvida. O que se espera é que os aplicadores da lei sejam sensatos. Como na charge do Fernando de outro dia, não podemos admitir que o bebê, antes de aprender "papá-mamã", balbucie "quero meu advogado!" toda vez que levar palmadas no bumbum.


O autor, Zarcillo Barbosa, é jornalista e colaborador do JC

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