Polícia

Proibida, venda de álcool para alcoólatra gera processo inédito

Luiz Beltramin
| Tempo de leitura: 5 min

Diariamente, o administrador de empresas V., de 42 anos, seguia uma rotina que, certamente, não terminaria bem. De casa para o emprego, do trabalho – sem necessariamente terminar o expediente – para o bar e de lá para casa, muitas vezes, necessitando da ajuda dos outros para não se enroscar nas próprias pernas.


Dependente do álcool, V. é mais um dos milhões que são vitimados pela doença, seja em Bauru como em todo o País. Segundo a Associação Brasileira de Alcoolismo, são cerca de 10 milhões de alcoólatras no Brasil.


No entanto, ao menos na cidade, uma iniciativa rara contribui para que a sociedade comece a se movimentar e busque seus direitos, principalmente para preservar as vítimas da doença que arrasa relacionamentos, reputações e famílias.


Parentes do alcoolista citado no início do texto – que, assim como os familiares, terá a identidade resguardada, a pedido dos mesmos – foram à Justiça contra um dono de bar de Bauru, acusado por eles de vender bebida para o dependente mesmo após ter ciência do problema enfrentado pelo freguês.


Na versão dos familiares, um comerciante do Jardim Panorama, que, a pedido da advogada que o defendeu, também não será identificado, além de não acatar os pedidos dos parentes do alcoólatra ainda teria, segundo o irmão do dependente, mandado os mesmos “manterem-no dentro de casa”.


Segundo o irmão do dependente, um empresário de Bauru, a única saída foi registrar um boletim de ocorrência que gerou o processo. Semana passada, porém, em audiência preliminar  mediada pelo juiz João Augusto Augusto Garcia, da 3ª Vara Criminal, as partes chegaram a um acordo e o comerciante desembolsará R$ 500,00, dinheiro revestido para uma instituição filantrópica de Bauru.



O acordo


O acordo, apresentado em sentença na forma de “pena restritiva de direitos”, conforme caracterizado em súmula, ressalva o próprio responsável pela acusação, o promotor criminal João Henrique Ferreira, não é de conteúdo condenatório. “Não se trata de um processo de condenação. É um acordo, sem, envolver reconhecimento de culpa”, esclarece.


Coordenador da Comissão de Direitos da Família, Sucessões, Infância e Juventude da subsecção bauruense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Olavo Peregrina Júnior advogou em prol dos familiares de V. Para o advogado, apesar do valor simbólico da pena imposta, a iniciativa pode motivar outras famílias a seguir o mesmo caminho.


Pelegrina lembra que, apesar das ações do gênero serem raras, o processo encerrado semana passada é apoiado na Lei das Contravenções Penais, de 1941.


Segundo o texto, é caracterizado contravenção (em suma, crimes “brandos”, com respectivas penas na mesma intensidade) o ato de vender bebidas alcoólicas tanto para menores de 18 anos quanto a “quem se acha em estado de embriaguez” ou “à pessoa que o agente sofrer das faculdades mentais”.


V., salienta o advogado, entra nas duas últimas modalidades. Apesar de não apresentar nenhum tipo de demência, perante os quadros médicos, toda pessoa afligida por dependência química é considerada, legalmente, sofrer das “faculdades mentais”.

 

Do outro lado do balcão

Regiane Simprini, advogada do dono do bar, por sua vez, reforça que o acordo na Justiça não representa confissão de culpa mas sim, alega, uma forma de abreviar um processo que seria penoso para seu cliente, já em idade avançada. “É um senhor com mais de 80 anos que considera o trâmite muito cansativo”, justifica.


A advogada acentua ainda que o proprietário do estabelecimento comercial afirma ter sido agredido verbalmente pela família do dependente. “Ele foi chamado de velho sem vergonha”, alega, dizendo que o cliente desconhecia o problema de alcoolismo do freguês. “Seo (nome do comerciante) é vítima, mas passou a autor”, considera a advogada do homem que topou desembolsar R$ 500 para colocar ponto final ao imbróglio.


Para advogado da família do dependente pivô do processo, em nova fase de tratamento contra o alcoolismo, muitas famílias desconhecem a legislação e não se dão conta de que podem mover ações contra quem vender bebida para entes com comprovado problemas com álcool. “O dono do bar tem responsabilidade”, considera.


Em caso inverso ao ocorrido no bar do Jardim Panorama, um comerciante sentiu o drama na pele, ou melhor, na pele do filho adolescente, para mudar a postura quanto a venda de álcool para pessoas embriagadas ou comprovadamente alcoólatras.


Morador da cidade de Fartura, região de Piraju, na divisa com o Estado do Paraná, o comerciante Luiz Fernando Bertoni periodicamente vem a Bauru, na companhia da esposa Liliane, para acompanhar o tratamento do filho Victório, de 25 anos. O rapaz, um dos atendidos pela comunidade terapêutica Esquadrão da Vida, está em fase final de recuperação. Desde o final da adolescência, Victório diz enfrentar problemas de saúde, sociais e emocionais causados pela bebida.


Após o drama enfrentado pelo filho, Luiz Fernando, que tem uma padaria, diz não comercializar bebidas com pessoas em aparente estado ou de comprovado vício. “Mais do que uma questão de lei, o mais importante é o bom senso do comerciante”, distingue Luiz.


O ápice do tormento etílico ocorreu em Jacarezinho (PR), cidade onde ele estudava Biologia. Numa manhã de domingo “pós-balada”, ele se lembra de acordar todo machucado. “É a amnésia alcoólica. Eu havia quebrado o vidro de uma porta do terminal rodoviário”, lembra-se.


Na ocasião, o jovem, recorda a mãe visivelmente emocionada, no afã de conseguir mais bebida na alta madrugada, havia se rebelado porque o bar da estação que já estava fechado. O álcool, atribui Victório, o impulsionou também para o consumo de drogas ilícitas. “Hoje tenho noção do quanto o tratamento foi importante para mim”, reconhece o jovem, que pretende seguir como voluntário na comunidade terapêutica.

 

Lei ‘cambaleante’

O promotor João Henrique Ferreira, apesar de estar a frente do caso, não se mostra tão otimista quanto a possíveis novos processos motivados pela iniciativa dos familiares de V. Para o jurista, mais do que leis mais severas, são necessários mecanismos para que as mesmas sejam colocadas em prática. “Nossa legislação precisa ser revista para efetuar o aplicativo. É necessário criar a efetividade. Ao invés de estipular-se penas de um ano, é mais eficaz garantir que a atual pena de um mês seja rigorosamente cumprida”, acredita o representante do Ministério Público.


Ferreira tem razão. Lei é o que mais existe. O problema está na hora de cumprir. Além da venda de bebida para alcoólatras, o artigo 63 da Lei das Contravenções Penais também considera ilícito o comércio de álcool para menores de idade. A pena, ao menos no papel, varia de dois meses a um ano de prisão ou multa.


 

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