Éder Azevedo |
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O berrante feito a partir do chifre do boi é um instrumento musical que perdeu força na mesma velocidade em que o transporte de gado por terra foi substituído pelo rodoviário. É ainda muito usado por cantores sertanejos, mas no geral, virou peça de decoração. Sua extinção deve acontecer em cinco anos e o motivo é muito simples: não haverá chifre de boa qualidade.
Para um dos mais antigos fabricantes do Estado de São Paulo, Jairo Domingos Agrizzi, o berrante ainda é utilizado por alguns berranteiros que participam de concursos. “Em Barretos há concurso todo ano. Eu conheço uma pessoa que foi oito vezes campeã lá. Eu nunca entrei em concurso. Só toco o berrante para colocar som e testar.”
Fazer um berrante de qualidade exige matéria-prima de primeira, atenção na hora de fazer os encaixes dos chifres, muita precisão na confecção das luvas, um polimento caprichado e habilidade para personalizar o instrumento musical.
Em Bernardino de Campos (130 quilômetros de Bauru) há um artesão que há 35 anos aprendeu o “ofício” com o pai e até hoje confecciona berrantes que “viajam” o mundo. Há exemplares confeccionados pelas mãos de Jairo Domingos Agrizzi no Canadá, Estados Unidos, Itália, Japão e Holanda.
Em terra nacional, os berrantes da BJS Boiadeiro estão presentes em todos os Estados, especialmente naqueles onde a atividade agrícola ainda está em alta. “Já vendi para o Brasil todo. No Mato Grosso, Acre, Goiânia e Maranhão ainda se usa berrante. No Mato Grosso e Maranhão, ainda é comum o transporte de gado por terra.”
No Estado de São Paulo, este tipo de transporte é usado somente para pequenas distâncias, por não compensar, avalia Agrizzi. Por aqui, não se usa mais porque se tornou caro. Transportar os animais por rodovia custa o equivalente, mas é mais rápido e sacrifica menos o gado. Antigamente, de Bernardino de Campos para Presidente Prudente, transportar uma boiada por terra demorava até 40 dias. O gado chegava quase morto, perdia muito peso. O berrante, nesses casos, direcionava os animais. Também é muito usado em rodeios.
O artesão enfatiza que quando iniciou na arte de fazer berrante a situação era muito diferente. Antigamente, os frigoríficos jogavam os chifres fora. Ninguém queria chifre, só o casco. Eu lembro que ia com meu pai ao frigorífico. Tinha um galpão maior que essa casa. Ele falava para pegar quanto quisesse, não precisava comprar. Podia lotar um caminhão. Nós ficávamos de três a quatro horas escolhendo chifres, a maioria era bom para fazer berrante. Nós trabalhávamos com 600 quilos de chifre. Tinha trabalho por cinco ou seis meses.”
Transformando chifres em berrantes
A arte de transformar chifres de boi em berrantes é uma herança de família, segundo Jairo Domingos Agrizzi, 63 anos. O avô era artesão e o pai também. Ele seguiu o mesmo caminho, porém partiu para a fabricação de um produto diferente, o berrante.
“Meu pai fazia arreios e cangalhas de tropa. Juntos, começamos a fazer berrante. Na época, tinha muito chifre bom. A história começou quando eu quis comprar um berrante e não pude, porque era um produto caro. O berrante bom é caro mesmo, é até hoje. Meu pai se propôs a fazer e começamos a fabricar.”
Berrante bom tem qualidade. Comparando com uma pinga. “Tem pinga de tudo quanto é tipo, tem pinga pura de qualidade. O berrante também é um instrumento que não foge À regra, assim como uma sanfona ou violão de marca.”
Na avaliação dele, para ser considerado bom, um berrante precisa ter determinadas características. “Tem que unir a qualidade do som com um acabamento fino. O visual, a estética são itens bastante considerados pelos berranteiros. É importante lembrar que o berrante é um instrumento musical.”
A matéria-prima para a confecção dos berrantes é o primeiro quesito a ser observado. “Eu tenho alguns fornecedores. Os chifres bons chegam do Paraná, Sertãozinho, no Estado de São Paulo, e Mato Grosso.”
Ele reclama da falta de material de boa qualidade. “Eu sofro para encontrar material de qualidade. Estamos em março e este ano ainda não recebi matéria prima. Os chifres que tenho no meu depósito são poucos. Deve ter no máximo 300 quilos. Deste total, conseguimos aproveitar só 30%, daqueles chifres selecionados. Para começar trabalhar precisaria de 600 a 800 quilos para fazer de 30 a 40 berrantes bons.”
O fabricante explica que o preço do berrante varia de R$ 300,00 a pouco mais de R$ 1.000,00, dependendo da qualidade do instrumento musical. Ele compara o valor do berrante ao do ouro. “O preço do ouro varia dependendo do tipo, de quantos quilates. O berrante também é assim. Depende da qualidade. A cor da emenda dos chifres pode alterar o valor para mais ou para menos.”
Arte musical: som pantaneiro é o que mais atrai os berranteiros
Para gerar um bom berrante é preciso ter um chifre de qualidade, como já dissemos. Algumas raças de animais produzem chifres mais adequados para a confecção de berrantes, explica Agrizzi.
“O chifre depende da raça. Os melhores são gerados por animais da raça Caracu, Buzerá, Gir, Pé Duro. O gado Curraleiro, que é famoso no Brasil, uma derivação do Caracu, também gera bons chifres. “Em algumas regiões do Brasil, tem muito. Essas raças geram chifres com a boca fina, comprido, ele é próprio para fazer emenda. O berrante é feito com duas até quatro emendas.”
Cada fabricante tem uma maneira própria de fazer um berrante. O som pantaneiro é o que mais atrai os berranteiros. “Colocar o som no berrante é uma arte. Quem não conhece o instrumento musical imagina que basta colocar um chifre dentro do outro para ter um bom berrante. Pode até dar certo, mas é uma causalidade. Eu consigo colocar o som que eu quero no berrante. O mais requisitado é o som mais pantaneiro, mais grave, mais puxado para o grave. A maioria dos berrantes à venda tem som muito agudo. O pessoal não gosta.”
Chifre é puro cálcio
O chifre do boi não serve apenas para fazer berrantes. Rico em cálcio, ele tem infinitas utilidades. É dele que se faz a queratina, que serve como base para a maioria dos xampus. Moído e seco, ele é um adubo orgânico, fornece nitrogênio para terra e tem uma ação mais prolongada do que os adubos comuns.
“O chifre é como se fosse uma unha. A maior parte dele é cálcio. Serve para fazer xampu e como adubo. O comum tem ação de 30 dias. O feito à base de chifre demora mais para se misturar a terra, porém sua duração atinge até seis meses. O efeito é prolongado.”
Nos Estados Unidos, de acordo com o artesão, o chifre seco e moído é misturado no concreto e utilizado na construção civil. “Cada um aplica de uma maneira. O Brasil, como maior produtor de carne do mundo, é o maior produtor de casco e chifre.”
No Canadá e Holanda o chifre do boi faz parte da composição da têmpera de aço. “O holandês desenvolveu uma técnica que usa o chifre do boi na têmpera de aço. Eles e os Estados Unidos compram muitos chifres do Brasil.”
Berrantes estão com os dias contados
O prazo máximo, segundo Jairo Agrizzi, para confecção de berrantes bons é de cinco anos. O motivo é muito simples: não haverá matéria-prima de boa qualidade. “O boi não desenvolve um bom chifre para berrante em dois ou três anos. Os frigoríficos estão abatendo o gado com essa idade, quando eles ainda são bezerros. Para desenvolver um chifre adequado, seria necessário o boi viver de 10 a 15 anos, em média. Antigamente, só abatia bois erados, não os bezerros. Havia mais chifres.”
No Brasil, segundo o artesão, a maioria do gado é Nelore, uma raça que o animal não tem chifre, assim como as raças europeias. Os chifres próprios para berrantes são gerados pelas raças Gir, Curraleiro, Buzerá e Caracu. Com os dias contados, o instrumento musical tende a ser valorizado. “Porque sem a matéria-prima de primeira teremos instrumentos de baixa qualidade.”
Arte não terá sucessor
O artesão de Bernardino aprendeu com seu pai a arte de fabricar berrantes, mas não deixará sucessor. Seu filho é chef de cozinha, portanto não haverá herdeiro para a marca BJS Boiadeiro, criada com as iniciais do pai, Benedito Agrizzi, a dele, Jairo Agrizzi e Sandro, que é seu filho.
“Meu pai morreu em dezembro de 2010. Meu filho está na casa dos 40 anos, não vive aqui, está trabalhando em outro Estado. Quando ele ainda estava aqui, desenvolvemos a marca BJS Boiadeiro.”
A falta de material para o trabalho também fez com que Agrizzi desistisse de ensinar outra pessoa, ainda que não fosse da família. “Eu não tenho interesse em ensinar. Não tem mais material. Não posso ensinar uma pessoa se ela não vai ter condições de dar prosseguimento ao trabalho. Não tenho segurança. Eu tinha cinco fornecedores, hoje tenho dois ou três.”
Sérgio Reis é um dos clientes
O artesão de Bernardino de Campos, Jairo Agrizzi, conheceu o cantor sertanejo Sérgio Reis quando ele ainda morava em uma república no Rio de Janeiro. “Eu assisti um show dele em Madureira. Ele ainda cantava Coração de Papel e nem sonhava em ser cantor sertanejo. Eu tinha uns 17 anos, na época.”
Do encontro nasceu uma amizade. “Eu conheço a família dele e ele a minha. Ele comprou muitos berrantes meus em 35 anos. Ele não pega berrante de outra pessoa, a não ser que ele ganhe. Para ele usar, vem buscar aqui. Ele liga, encomenda e manda buscar.”
Além dele, os berrantes fabricados em Bernardino de Campos também fazem parte dos instrumentos musicais de Sula Miranda, Chitãozinho e Xororó e Lúcia Veríssimo. “Vendi muitos berrantes para as lojas de artistas como Chitãozinho e Xororó. Para a dupla Goiano e Paranaense, o artista personalizou o berrante. “A pedido deles, eu coloquei o nome da dupla e ainda desenhei uma viola no berrante. É um instrumento musical que eles guardam com muito carinho. Dias desses, eu estava ouvindo uma rádio de Goiânia e eles estavam sendo entrevistados. Ele falou de mim. Eu liguei lá e nós conversamos. Foi muito gratificante.”
Passo a passo
É no frigorífico onde se abate o boi que tem início o processo que, ao ser concluído, será um berrante, explica Jairo Agrizzi. “Eles abatem o boi e retiram o chifre, que é colocado em água fervendo. Na água, o chifre perde o miolo e é colocado em um saco para ser transportado.”
Em Bernardino, o chifre chega praticamente seco, mas para evitar qualquer umidade, ainda passa a semana no depósito do artesão. “Deixamos eles espalhados pelo chão. Eles vêm com pouco cheiro e aqui ficam mais secos. O cheiro volta na fase em que é lixado.”
No meio de mais de 600 quilos de chifre, o artesão tem que enxergar os grandes, que permitem encaixes. “É um quebra-cabeça. Um tem que caber dentro do outro. Minha experiência permite que eu os enxergue de longe.”
Depois de encontrar os chifres que encaixam, o artesão faz cortes. “Corto o pé de um chifre e a ponta do outro. Em seguida, tiro a casca deles. O corte tem que ser preciso. Para tirar a casca, uso lixa de várias espessuras.”
Emendas colocadas no lugar necessitam de mais lixa. “Tem que ficar lisinha. Sobre elas vão as luvas, que precisam ter cortes milimetrados. São feitas sob medida. Depois das luvas, vai o som e o berrante está quase pronto. Para concluir o trabalho, basta apenas o acabamento.”
Serviço:
Mais informações sobre a arte de Jairo Domingos Agrizzi na rua Santos Dumont, 25- Bernardino de Campos.
Telefone (14) 3346-1863.