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Os polders

Paulo Cesar Razuk
| Tempo de leitura: 3 min

O que mais se nota hoje nas relações pessoais é cada um querendo preservar seus interesses às custas dos interesses dos outros. Prevalece o orgulho, a agressividade, o individualismo e a inclinação para competir com os demais por qualquer coisa e em qualquer lugar: pela vaga, no trânsito, na fila. É preciso estar sempre certo ou estar sempre no comando. Quando estava na administração da universidade, ao observar um atrito nas relações de convivência, citava o exemplo holandês como sociedade que sempre minimizou esse tipo de conflito. Penso que os holandeses apresentam o mais alto grau de conscientização de convivência social. Há uma razão para esse comportamento que remonta séculos. Aproximadamente um quinto da área total da Holanda está cerca de sete metros abaixo do nível do mar. Eram baías rasas cercadas por diques cuja água foi bombeada para fora: os "polders". Os holandeses começaram a drená-los há quase mil anos usando os moinhos de vento e ainda hoje continuam bombeando a água que gradualmente se infiltra. Em cada polder há linhas de bombas, a começar por aqueles mais distantes do mar, que bombeiam a água em sequência até, finalmente, a última bomba do último polder jogar a água de volta ao mar. Por isto, lá todos sabem que é preciso cultivar boas relações de convivência. Quer seja sua amiga ou não, aquela pessoa pode ser a responsável pela bomba vizinha ao seu polder. Lá todos sabem que se os diques falharem e se as bombas não forem acionadas, todos se afogarão juntos. Essa reconhecida interdependência de todos os segmentos da sociedade holandesa contrasta com a tendência atual de isolamento observada por aqui, calcada na falsa crença de que se é completamente autônomo e imune aos problemas da sociedade ou ao sofrimento dos outros.

Pense apenas por um momento o quão diferente seria sua vida se ninguém tivesse exercido a responsabilidade de cuidar de você e educá-lo. Por isso, todos nós temos um grande débito ? com a família que nos criou, com os amigos que nos orientaram, com os educadores que nos ensinaram e com a nação que nos protege. É óbvio que devemos restituir este débito fazendo o que estiver ao nosso alcance para melhorar a vida das pessoas e da sociedade como um todo. Mas, hoje, neste mundo globalizado onde somos elos de uma só corrente, das sociedades mais ricas além da internet, Coca-Cola e Iphones, se recebe também lixo sólido, poluição atmosférica e os altos níveis de contaminação química através das águas que banham todos os continentes. Ao valorizar a madeira de lei e barbatana de tubarão eles são, também, responsáveis pelo desmatamento das florestas tropicais e por varrer, com pente fino, os oceanos do mundo. Da mesma forma, as sociedades mais carentes exportam um número incontável de pessoas esfomeadas, legais ou ilegais que chegam aos países centrais de barco, caminhão, trem e até a pé. Exportam terroristas e doenças levadas inadvertidamente por passageiros de aviões transcontinentais. A instabilidade política ou econômica, em qualquer parte do mundo, afeta bolsas de valores, rotas comerciais e a produção industrial na outra parte do mundo.

As sociedades de hoje, mesmo as mais ricas e tecnologicamente mais avançadas, estão tão interligadas e dependentes que um eventual colapso não ficaria circunscrito a um país. O risco de tal colapso é motivo de preocupação crescente. Muitos temem que o crescimento populacional, associado ao ecocídio, a falta de civilidade, ao individualismo e materialismo exacerbados, tenha superado a guerra nuclear como uma ameaça à população mundial.

O autor, Paulo Cesar Razuk, é professor titular aposentado do Departamento de Engenharia Mecânica da Faculdade de Engenharia da Unesp - câmpus de Bauru

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