No final da segunda metade do século 19, Karl Marx, um socialista materialista dialético vivia criticando o seu colega das causas operárias Joseph Proudhon, a quem chamava de "socialista utópico". Proudhon era considerado pouco prático por defender que o trabalhador poderia também financiar a produção e se autossustentar num sistema cooperativo. Ambos, no entanto, concordavam que a greve deveria ter um cunho instrumental e extremo na luta pela emancipação do proletariado. A greve é parte de um processo mais amplo de contradição de interesses e de classes entre o capital e o trabalho, nas sociedades capitalistas. Mais importante que o aumento no salário - sempre insuficiente - a greve deveria servir para consolidar o processo de associação da massa trabalhadora. Fora desse eito a paralisação da produção acaba servindo para influenciar o desenvolvimento do capitalismo. A automação dos tempos modernos, por exemplo. Atendidas as reivindicações, ou parte delas, tudo volta ao normal e o "regime de exploração do trabalho" continua. Com a agravante de atrasar a "revolução do proletariado".
A parede dos motoristas de ônibus de São Paulo em desobediência à orientação das lideranças da categoria, na gíria sindical poderia ser chamada de "greve da vaca-louca". Gerou o caos na maior cidade do país. Um milhão de trabalhadores não puderam chegar ao emprego ou regressar ao lar; congestionamentos no trânsito e paralisação do pequeno comércio. Sem comunicação prévia e nem apoio dos sindicatos o movimento foi ganhando força através do boca a boca. Passageiros foram expulsos dos ônibus. Homens armados obrigaram motoristas a parar. Veículos tiveram os pneus furados e acabaram estacionados na entrada de terminais ou nas ruas, interrompendo o trânsito. Sem poder voltar para casa, passageiros chegaram a dormir dentro dos terminais de transporte. É evidente que os mais pobres sofreram os piores incômodos e foram os primeiros a se revoltarem contra os grevistas. Um prejuízo imenso para as estratégias de Proudhon e Marx para transformar o trabalhador, de objeto a sujeito do próprio trabalho.
A questão é que a proximidade da Copa do Mundo tem acirrado os ânimos de sindicatos, que não escondem a pretensão de usar o Mundial para pressionar os governos. Policiais civis de 10 estados aderiram à paralisação nacional como alerta para o desastre a que poderiam levar a realização da Copa caso as reivindicações do grupo não sejam atendidas. Movimentos sociais também se mostram propensos a usar a proximidade do Mundial para defender suas demandas. Tentam unir a luta por pautas bem específicas à insatisfação pelo atraso ou mau uso do dinheiro público nas obras da Copa. Grevistas e movimentos sociais entendem que os governos, querendo evitar problema durante a Copa, ficam mais "sensíveis" a atender às reivindicações. Mas, é preciso bom senso. Saber negociar, evitar que os inocentes, o país e as instituições naufraguem num mar de badernas.
Neste momento crucial, de grande interesse até para a continuidade do governo petista é estranho que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tenha se pronunciado. Justamente ele que liderou o movimento sindicalista de resultados e conseguiu as maiores conquistas para os trabalhadores da indústria automobilística. Curioso omitir-se numa hora desta a passar as suas experiências para os companheiros. É verdade que, ultimamente, a blindagem ao emprego dos trabalhadores custou subsídios em forma de redução de impostos para as montadoras. As greves do ABC da era Lula acabaram também dando um extraordinário impulso ao segmento de automotores. Quadruplicaram as marcas e bandeiras. Os carros deixaram o status de "carroças".
Durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937), as lideranças sindicais foram cooptadas pelo governo ditatorial. Surgiu o sindicalismo chapa-branca apelidado de "pelego" - aquela manta de pele de carneiro que é colocada entre o arreio e a pele do animal de montaria para amenizar os efeitos do trote. Quem interrompeu esse peleguismo foi Lula, nos anos 1970, a partir do Sindicato dos Metalúrgicos. A luta por melhores condições sociais e políticas teve um sentido prático. As assembleias de trabalhadores lotavam o estádio. Aquele pernambucano barbudinho agitava multidões, organizava o movimento e com isso impediu demissões em massa, cedendo quando era preciso para manter os postos de trabalho. Virou presidente da República e personagem internacional: "o cara". Se de alguma forma acabou ajudando as multinacionais, paciência. São as contradições do sistema.
O autor é jornalista e articulista do JC