Regional

"Boca do Sertão" conta histórias de Piratininga

Rita de Cássia Cornélio
| Tempo de leitura: 9 min

O livro “Boca do Sertão - A História de Piratininga na Marcha do Café” escrito por Luis Paulo Cesari Domingues registra fatos históricos, pitorescos e lendas que figuraram na vida daqueles que viveram no pequeno povoado dos “Inocentes”. O trabalho foi contemplado pelo Programa de Incentivo à Cultura e patrocinado pela Duratex. “Há cinco anos eu faço a pesquisa histórica e anoto depoimentos de antigos moradores. Eu fazia trilha de bicicleta e fui conhecendo as propriedades rurais. Pesquisei também a história da cidade. Inscrevi no programa e fui contemplado. Fomos buscar um patrocinador que terá desconto em impostos.” 

 

A obra de pouco mais de 150 páginas, ilustrada com fotos de Calil Neto, pode ser a primeira de uma série, comenta o jornalista. 

 

“No início do século XX, ‘Boca do Sertão’ era a última estação ferroviária da linha, independente da empresa. Era o lugar para onde iam as pessoas que queriam enriquecer. Imigrantes, fazendeiros e colonos procuravam essas localidades onde se pagavam melhor. Eram lavouras de café que estavam abrindo.” 

 

Domingues lembra que muitas cidades da região foram “Boca do Sertão”. “Quero fazer uma série. Estou trabalhando para isso. Fiz primeiro Piratininga porque sempre gostei de lá e tenho negócios na cidade. Tenho o Museu do Café e outros projetos. Quero fazer Agudos, São Manuel, Lençóis Paulista e Botucatu.” 

 

Ele pretende ainda dar um ‘start’ no turismo regional histórico e pedagógico. “Comecei com o Museu do Café e sei que tem muitos lugares onde é possível desenvolver pontos turísticos. Alguns estão desativados. Ninguém conhece, nem mesmo quem mora lá. É um trabalho de médio a longo prazo.” 

 

Na opinião dele, o livro pode despertar os interessados em ajudar. “Precisa de estrutura. Tem povoados, vilas, fazendas antigas com igrejas belíssimas, abandonadas. Estamos começando a estudar um roteiro que sai do Museu do Café e vai para alguns desses lugares. Eu não tenho capital para investir. O certo é que a região tem potencial para isso.” 

 

A obra é um ‘passeio’ por vários fatos históricos e ainda privilegia alguns antigos moradores que estão vivos e lembram de fatos que muitos dos atuais habitantes nem sabem.

 

Cidade foi marcada pela vida camponesa

 

Piratininga significa peixe a secar em tupi-guarani. O nome não foi escolhido pelo significado, mas sim porque Adolfo Pinto queria homenagear a cidade de São Paulo, entendendo que a nova localidade apresentaria um desenvolvimento fora do comum, por ser “Boca do Sertão”, ponta da linha da ferrovia e centro abastecedor de uma enorme área que passaria a produzir café. Foi ele quem concebeu o desenho urbano triangular, formado pelas ruas principais do Centro da cidade - para reproduzir parte do Centro de São Paulo - e quem criou o abecedário das estações da Companhia Paulista. 

 

O município de Piratininga tem sua história marcada de maneira profunda pela abundante zona rural e pela vida camponesa. O amplo território manteve até os tempos atuais extensas áreas recheadas de belezas naturais e raridades arquitetônicas antigas, muitas delas do início do século XX. Edifícios escondidos no meio do sertão estão espalhados por todas as áreas rurais. Parte dessas construções adormece no meio das matas, dos pastos e das plantações, e outras encontram-se ainda habitadas por agricultores e pecuaristas. 

 

No passado, o município foi ainda maior, conta o livro. Em 1921, com uma população total de 30 mil espalhada por sua sede, colônias de fazendas e povoações, compreendida também os atuais municípios de Cabrália Paulista, Duartina, Lucianópolis e Gália. 

 

Chegada do café

 

O café chegou ao município de Piratininga, conta o livro, através dos desbravadores. Foi plantado inicialmente para consumo próprio e posteriormente foi cultivado entre vizinhos, mas a renda desses cafeicultores não chegava nem perto das grandes fortunas que iriam surgir no futuro. A era das plantações em larga escala começou com a família Rodrigues Alves que adquiriu 10 mil alqueires de terras que foram chamadas de Fazenda Veado. 

 

O impulso seguinte partiu das negociações com a ferrovia da Companhia Paulista, para que a linha que chegara a Agudos em 1903 avançasse até as cercanias do pequeno povoado dos Inocentes. A Fazenda Veado, hoje chamada de São Pedro, foi a grande responsável pela fundação de Piratininga. 

 

Para produzir café em larga escala, era preciso dispor de transporte em larga escala. Coronel Virgílio Rodrigues Alves doou 15 alqueires contíguos à fazenda para a construção da vila que iria receber a estação da estrada de ferro Companhia Paulista.

 

Casa Oriental: um típico armazém 

 

Hecmet Farha nasceu em Piratininga em 1925. Filho de tradicional família libanesa, muito influente no município, viveu a era do ouro do café e também do algodão. Junto com parentes, construíram a Máquina Bandeirantes, que beneficiava café e algodão, arroz e também servia como moinho de fubá. Ainda como comerciantes, os Farha eram proprietários da Casa Oriental, típico armazém de secos e molhados da época. 

 

“De todas as nacionalidades de imigrantes que vieram para o Brasil naquela época, os libaneses e os sírios foram os únicos que não dependeram de acordos com governos. Vieram sozinhos, sem planejamento, com a cara e coragem, para fazer nova vida.”  

 

Política acirrada 

 Maria do Carmo Soares Mendes nasceu em Piratininga em 1934. No livro, ela lembra que só apanhava na infância por um motivo: brincava com a filha do inimigo político do pai. Ela conta que, nas eleições, as moças que apoiavam a UDN passavam batom e ficavam na rua, esperando o pessoal ir votar. “Na época, os eleitores levavam a cédula de casa, com o nome do candidato escrito e era só colocar na urna. Elas pediam a cédula e beijavam, pois daria sorte. Se o voto era para o PTB, elas beijavam o papel e a marca do batom inutilizava o voto.” Ela ficou sabendo e resolveu tomar uma providência. “Pedia a cédula de quem iria votar na UDN e beijava para dar sorte. A política era mesmo muito disputada. Lembro que a única vez que eu vi meu pai consternado, foi quando o Getúlio morreu.” 

O fim de uma era

Os anos 60 foram para Piratininga como o fim do mundo, conta o livro. Já no início da década, quando o primeiro avião a jato sobrevoou a cidade, causou uma reação tremenda em sua vasta área rural. Os habitantes das colônias assustaram-se e o barulho das turbinas foi comparado ao de um grande trovão. Muitas pessoas se abraçaram, outras choraram desesperadas, despedindo-se dos companheiros de trabalho, pensando que o mundo iria acabar. 

 

O mundo não acabou, mas já era esperado que um modo de viver chegaria logo ao fim. A vida nas colônias começava a se desestruturar. O retrocesso, a pobreza, o isolamento e a decadência das lavouras de café começaram a ser a tônica da paisagem rural do município, como em todas as áreas do Estado de São Paulo que haviam mantido a produção cafeeira como atividade primordial. 

 

Na década de 60, os colonos estrangeiros: italianos, espanhóis e japoneses já haviam deixado as lavouras de Piratininga a procura de uma vida melhor nas cidades. O café estava em declínio e alguns fazendeiros trocavam o cultivo do café por pecuária. Em Piratininga, o café perseverou por mais um tempo, mas apenas pelas mãos dos mais abnegados. Poucas propriedades rurais estenderam o plantio até a década de 90. 

 

Ainda hoje, segundo o livro, há plantio de café em algumas pequenas propriedades e também na Fazenda Guarantã, cuja produção é totalmente destinada ao abastecimento da indústria de café, com sede em Bauru. 

 

Lendas são lembradas por morador 

 

As histórias fantásticas da “Boca do Sertão” têm lendas que até hoje ainda ‘ronda’ a memória dos moradores da cidade de Piratininga. Dentre as histórias aterrorizantes mais conhecidas está uma ouvida pelos lados da Fazenda Santa Maria e Fazenda Veado, ambas vizinhas da zona urbana.

 

Os antigos contavam que numa noite, um morador da Fazenda Veado estava percorrendo os dois quilômetros de estrada de terra que liga a sede da propriedade rural a Piratininga, quando foi atacado por um grande animal peludo. 

 

A fera arrancou-lhe a orelha com uma mordida e a partir de então, nas noites escuras, é possível ouvir o homem gritando pela orelha lá daquelas bandas: “Dá minha orelha! Dá minha orelha!”. 

 

Outra lenda diz respeito a um dos fundadores da cidade, coronel Virgílio Rodrigues Alves. Homem poderoso, sua família era dona da terceira maior fortuna do país. Dono da fazenda Veado, o coronel tinha o costume de sair com seu cavalo e passar dias a verificar todos os cantos de seus domínios. A propriedade rural tinha  mais de 10 mil alqueires. 

 

Gostava tanto de ‘vigiar’ suas terras que, mesmo depois de morto, na década de 1920, seu espírito teria continuado a fazer a ‘revista’. Em noites especiais, dizem os sertanejos, ouve-se a cavalgada do coronel ecoando pela serra da Catarina. 

 

Um causo contado por Antônio Sérgio de Almeida Campos Jr, proprietário da Fazenda Laranja Azeda é conhecido por todos os que habitam a zona rural da cidade. Batizado de Corpo Seco, a lenda diz que dois sitiantes que eram pai e filho cortaram relações. Um dia, o pai arreou seu cavalo e foi até a propriedade do filho para tratar de um assunto.

 

Lá chegando, amarrou o cavalo e pegou uma espiga de milho do filho para dar de comer ao animal. O filho se revoltou: “Se você quer dar milho para seu cavalo, dê sei próprio milho”. O pai ficou louco de raiva e encarou o filho proferindo uma praga: “Do mesmo modo que acontece com as espigas de milho, vai acontecer com você. Você vai crescer, morrer, secar. Igual a uma espiga de milho.” 

 

O filho morreu e as pessoas contam que ele ficou uma espiga de milho. O corpo não apodreceu, mas secou. As unhas e os cabelos cresceram muito, mas o corpo não apodreceu. Ele continua lá, seco, no cemitério do Turvo, conta o livro. 

 

A caveira vestida de branco é outra história contada no livro. Nos idos de 1972, próximo a entrada da Fazenda São Domingos, nas alturas da cercarias do povoado de Brasília Paulista, segundo os moradores, a caveira vestida de branco apareceu várias vezes. Ela ficava parada na porteira, vestida de branco e com chapéu. 

 

A pessoa era vista uma única vez, quando o observador olhava de novo, por dentro da roupa havia uma caveira. O fato causou um alvoroço e ninguém mais passou sozinho na porteira a noite. Foram várias pessoas que viram a pessoa vestida de branco. Até hoje, segundo o livro, quem dirige de carro pela estrada de terra, com destino a Brasília Paulista, vê os ossos da cabeça de um boi pendurados na cerca, marcando o local desses acontecimentos.

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