Geral

Dia do Datilógrafo vai além do saudosismo

Dulce Kernbeis
| Tempo de leitura: 7 min

João Rosan

César usa muito a sua Olivetti, no escritório onde trabalha

Hoje é Dia do Datilógrafo. “Dati o quê?”, perguntarão os teens, aqueles que estão na pré-adolescência e não passam dos dez anos de idade. Isso mesmo: é dia do profissional da datilografia, que foi um dos serviços mais importantes do mundo até meados da década de 80. São eles os atuais “digitadores” da máquina de escrever.

Não fossem as máquinas de escrever provavelmente não estaríamos digitando nos celulares como fazemos agora. E, antes que se fale de sua importância, é bom lembrar que datilografia é uma palavra de origem grega: dáctilo significa dedo e grafia significa escrita. Então, ter o diploma do curso de datilografia era o equivalente a dominar a arte de bater textos com os dedos através do uso do teclado da máquina. Uma arte essencial.

À época, por cerca de 100 anos,  “tirar o curso de datilografia” era condição sine qua non para quem trabalhasse no setor comercial e de serviços, nas repartições públicas, nos bancos e todos os escritórios.

A invenção – a máquina de escrever – foi uma prerrogativa do mundo moderno, onde havia necessidade de maior rapidez e uniformidade da escrita. Com ela, o desenvolvimento econômico e social era acelerado, a fluidez da comunicação muito maior e mais ainda: tornou-se até movimento de emancipação da mulher no mercado de trabalho.

Relíquia

Hoje, a máquina de escrever e suas marcas mais expoentes, a Remington e Olivetti, viraram objeto de decoração e relíquia.  Os  cursos de datilografia foram substituídos pelos de digitação (há quem garanta que, no futuro, nem isso haverá e as crianças já nasçam digitando!) e os bauruenses se lembram de forma saudosista da antiga Escola Progresso, da professora Celina Alves Neves que, por cerca de meio século, liderou o segmento na cidade. Coisa do passado. Porém, há quem ainda use a máquina de escrever.

Afinal, só se passaram 30 anos após a introdução do computador na vida da gente. Assim, apesar de ter se tornado relíquia e digna de colecionadores, uma máquina de escrever não é algo tão obsoleto assim.

Uso contínuo

E há várias razões para se continuar usando essa máquina. “Apesar da modernidade, há certos formulários que só se conseguem preencher à máquina, como guia de pagamentos específicos para as empresas”, garante o contabilista César Augusto Ciafreis, que a usa para suas atividades profissionais. Aos 12 anos, ele foi fazer um curso de datilografia em uma escola do bairro Alto Alegre, onde morava. Depois, aos 18, começou a fazer cursos técnicos em contabilidade e trabalhar em escritório. Nunca mais, mesmo dominando o computador,  deixou de datilografar. 

Depender da máquina traz dificuldades quando é necessário um conserto. Já não há oficinas. Mas vale lembrar que máquina de escrever não é algo que dê tanta manutenção e que estrague facilmente. Mas nada que “seu Moreira, não resolva”. Moreira é  um conhecido “consertador e revendedor delas”,  do bairro Bela Vista, onde, por sinal, fica o escritório contábil de César. E na última vez que ele precisou de um conserto, “seu Moreira” ainda emprestou uma das dele, “porque sabia que a gente não poderia ficar sem’.

Quem também não fica sem usar a máquina é a secretária Célia de Fátima Merlin Teixeira, de 56 anos, funcionária da parte financeira da Vila Vicentina. Nela, Célia preenche (com cópia em papel carbono) os cheques de entidade. Célia também se modernizou e sabe usar um computador, mas recorda com carinho da escola frequentada aos 12 anos, “lá em Piratininga, a escola nem existe mais”.


TECLAR SEM OLHAR

O interessante é que o curso de datilografia - durava em média 6 meses, com aulas pelo menos três vezes por semana - era também um curso de formação em secretariado. Depois de aprender e decorar teclar sem olhar para o teclado, as lições que começavam com “ASDFG” na mão esquerda repetidos à exaustão, terminavam com o aluno aprendendo a formatar uma carta, um currículo, fazer um pedido de emprego, encaminhar a solicitação correta (em um português escorreito) de um pedido de ajuda, por exemplo. E, claro, transcrição de cartas pessoais, correspondências trocadas entre bons autores, poesias de escritores famosos e até orientações de boa convivência. Então, aprender datilografia trazia também lições para a vida.

Economia

E há quem até hoje ache muito complicado usar um computador, além de caro. Em época de necessidade de poupar os recursos hídricos, quer coisa melhor do que não ter que plugar a máquina na energia elétrica? Embora tenha existido a máquina elétrica, é a sua versão mecânica mesmo que correu o mundo.

É o caso do artista Manoel Batista Fernandes, 48 anos, que nunca usou um computador. Seus textos, suas correspondências, as ideias que têm para suas apresentações são todas colocadas no papel através da máquina de escrever. “Ainda hoje há suprimentos, como fitas no mercado, mas me preocupa o dia em que não existir mais”, diz, embora se lembre com prazer que o disco em vinil voltou com tudo a despeito da invenção do CD, DVD e mais recentemente o Blu-Ray. Assim, ele espera não ter que aposentar tão já sua máquina.

Mas isso não quer dizer que ele seja avesso à tecnologia. Ao contrário, foi graças à datilografia que se adaptou facilmente ao smartphone. Nele, Manoel Fernandes digita de tudo. E deve isso ao teclado  Qwerty.

Para quem não reparou ainda, no teclado do telefone ou do computador, está a palavra “Qwerty” são as primeiras letras. A disposição das teclas foi patenteada pelo inglês Christopher Sholes em 1868,e vendida à Remington em 1873, quando foi visto pela primeira vez em máquinas de escrever.

‘pc com impressora’

“Uso o smartphone porque é rápido, não tenho muita paciência para esperar um PC, notebook. Ficar abrindo, iniciando”, sintetiza Manoel. Ele, que é de Duartina, divide a percepção infanto-juvenil de que uma máquina de escrever é um computador que já vem com impressora e não precisa de energia elétrica. Pelo menos é o que parece que pensam os que, tendo menos de 15 anos, são apresentados pela primeira vez ao engenho.

Essa percepção está mais do que clara em um artigo de Lúcia Carvalho, paulistana nascida em 1962, arquiteta e escritora, reproduzindo uma história real, no artigo que leva o nome de “A máquina de Canabrava”.

Por coincidência (ou seria sincronicidade?), o artigo foi escrito a partir de uma história verídica, envolvendo uma tia de Lúcia que morava onde? Onde? Em Duartina, terra natal de Manoel.


A máquina da Canabrava

Lúcia Carvalho

Escritora e arquiteta

Ouve só. A gente tava, neste carnaval, esvaziando a casa da tia que morreu. Móvel, roupa de cama, louça, quadro, livro. Aquela confusão, quando ouço dois dos meus filhos me chamarem.

— Mãe!

— Faaala.

— A gente achou uma coisa incrível. Se ninguém quiser, pode ficar para a gente? Hein?

— Depende. Que é?

Os dois falavam juntos, animadíssimos.

— Ééé… uma máquina, mãe.

— É só uma máquina meio velha.

— É, mas funciona, está ótima!

Minha filha interrompeu o irmão mais novo, dando uma explicação melhor.

— Deixa que eu falo: é assim, é uma máquina, tipo um… teclado de computador, sabe só o teclado? Só o lugar que escreve?

— Sei.

— Então. Essa máquina tem assim, tipo… uma impressora, ligada nesse teclado, mas assim, ligada direto. Sem fio. Bem, a gente vai, digita, digita…

Ela ia se animando, os olhos brilhando.

— … e a máquina imprime direto na folha de papel que a gente coloca ali mesmo! É muuuito legal! Direto, na mesma hora, eu juro!

Eu não sabia o que falar. Eu juro que não sabia o que falar diante de uma explicação dessas, de menina de 12 anos, sobre uma máquina de escrever. Era isso mesmo?

— … entendeu, mãe?… zupt, a gente escreve e imprime, a gente até vê a impressão tipo na hora, e não precisa essa coisa chata de entrar no computador, ligar, esperar hoooras, entrar no word, de escrever olhando na tela, mandar para a impressora, esse monte de máquina, de ter que ter até estabilizador, comprar cartucho caro, de nada, mãe! É muuuito legal, e nem precisa de colocar na tomada! Funciona sem energia e escreve direto na folha da impressora!

— Nossa, filha…

— … só tem duas coisas: não dá para trocar a fonte nem aumentar a letra, mas não tem problema. Vem, que a gente vai te mostrar. Vem…

Eu parei e olhei, pasma, a máquina velha. Eles davam pulinhos de alegria.

— Mãe. Será que alguém da família vai querer? Hein? Ah, a gente vai ficar torcendo, torcendo para ninguém querer para a gente poder levar lá para casa, isso é o máximo! O máximo!

Bem, enquanto estou aqui, neste “teclado”, estou ouvindo o plec-plec da tal máquina, que, claro, ninguém da família quis, mas que aqui em casa já deu até briga, de tanto que já foi usada. Está no meio da sala de estar, em lugar nobre, rodeada de folhas e folhas de textos “impressos na hora” por eles. Incrível, eles dizem, plec-plec-plec, muito legal, plec-plec-plec. […]

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