Nélson Gonçalves |
|
|
Rolando Boldrin persegue sua missão de defender e difundir a cultura popular dos diferentes Brasis há 54 anos |
Ele não gosta do rótulo de caipira, mas nadinha por estigma ou ‘frescuriti curturá’. Sim, ele fala com o “R” bem arrastado, fruto do ‘caipirês sim sinhô’ e com muito orgulho! Mas o que o faz e o fez ator, artista, apresentador, roteirista, compositor, cantador e contador de causos, há 54 anos na estrada, é a peregrinação como amante da diversidade cultural brasileira. É que desde o tempo de menino em sua terra natal, São Joaquim da Barra (SP), a sina de Rolando Boldrin não tem sido outra a não ser cantar, tocar como autodidata, prosear e contar em causos a cultura popular de seu País. Portanto, literalmente, parafraseando o título de um de seus livros, Boldrin assumiu a missão: “Vamos tirar o Brasil da gaveta”.
Carismático na conversa ‘te-te-a-te-te’ tal qual em cima do palco, Boldrin lançou suas impressões sobre a televisão brasileira, o mundo fonográfico e a vida antes de show que realizou em Londrina (PR), no último sábado. Membro de família de uma dúzia de filhos, nunca mais deixou a empreitada de valorizar o País desde que, aos 16 anos, pegou carona em um caminhão de São Joaquim da Barra rumo a São Paulo, para “tentar a sorte”.
Enquanto sua produtora Patrícia Maia cuidava dos detalhes cênicos em artesanato brasileiro no palco do Teatro Marista, para lotados 900 lugares na noite de vento frio londrinense, Boldrin contou que, em seu show, fala versos do maranhense Catulo da Paixão Cearense, de Guimarães Rosa, conta um pouco da história do rádio, canta coisa antiga, conta causo e tira, claro, gargalhadas da plateia com piadas ou tiradas coloquiais da vida mais simples do caboclo.
Com seu jeito matuto, uma pitada de sensibilidade e uma dose de humor gentil, Boldrin salienta que não é expert em caipira. “Meu negócio é Brasil. Eu mexo com a música nordestina, sulista, mineira, paulista, com as diferentes manifestações brasileiras em diferentes regiões. Eu desde moleque atuou em cima de questões regionalistas. A Inezita Barroso sim trabalhava no segmento, com a música caipira, no programa “Viola minha viola”. Mas eu sou amante da cultura popular brasileira, genuína sim, mas em suas diferentes vertentes”.
Aos 78 anos, Rolando mostra no palco a vitalidade dos versos e a energia do amor pelo lado genuíno do “ser brasileiro”. Durante a passagem de som, ao emprestar o ouvido para conferir a acústica na plateia, ele antecipou: “Enquanto eu puder vou falar do Brasil por ai. Estou no apronto de um novo CD. Tá quase prontinho. Tem essa variedade que eu canto, sempre. Estou gravando, por exemplo, o Tom Jobim. Logo eu lanço”.
Quando o contrarregra do Teatro Marista lhe apontou o centro do palco, em relação ao público, despertou seu lado caboclo, desconfiado, com olhar de mira de “Vide vida marvada”. Parecendo deixar falar alto a desconfiança boa que atiçara seu “peito manso”, Boldrin desceu e contou uma fileira de cadeiras com o dedo: “Ah, a intuição do olhar não me faia. O centro não é aquela marca”, soltou, com um sorriso largo. E lá foram os auxiliares puxar os móveis do cenário para o centro...
“Os conteúdos de nossos vários caipiras”
Rolando Boldrin, sempre que pode, repete que o Brasil tem vários caipiras e, cada qual, tem sua essência, seu dialeto e sua contribuição para o sincretismo cultural. “Na região de Itapetininga, por exemplo, tem pesquisa que identifica a influência do italiano no caipira. Tem o caipira mulato, o mais preguiçoso, o mais trabalhador. O Cornélio Pires pesquisou o comportamento também do caipira”, conta.
Mas ele reforça que Cornélio Pires era um escritor sobre o tema caipira, mas não compositor. “Como eu gosto muito dele, desde garoto eu lembro e tenho os livros dele. Nós temos inúmeros autores temáticos, alguns compositores, que demarcaram história no segmento. O Angelino de Oliveira é o autor de uma música só, ‘Tristeza do jeca’, que ficou famosa, um clássico caipira”, menciona.
Sem ter completado ao menos o ciclo primário, Rolando foi formatando o HD de sua vida com nossos diferentes Brasis. “Sou autodidata, só estudei três anos em toda a minha vida em grupo escolar. Conheço 20 países, mas só falo a minha língua. Sou nacionalista por natureza, canto minha terra e gosto do meu País. E quando eu canto e falo do meu País, não é minha terra, São Joaquim da Barra, nem Guaíra. É o canto do Sul, do Norte, do Sudeste, do Centro Oeste. Sou um cidadão da prática cultural brasileira”, destaca.
No show, Rolando lembra que contracenou com Mazzaroppi no início da carreira do caipira, quando ele passou a percorrer o Interior do País para divulgar seus filmes. “Eu dava as ‘deixas’ para o Mazzaroppi contar suas histórias. Ele fazia um dois em um para divulgar seus filmes. Subia antes no palco e fazia diálogos de improviso comigo. Depois o público acompanhava o filme. E lotava”, lembra.
De origem como ator, ele fez teatro, novela, rádio, cinema, gravou 200 músicas, todas brasileiras, entre Noel, Almirante, Caymmi e outros tantos. “Mas o que me marcou muito foi o trabalho em cima da música caipira. E como eu sou do Interior e conto causo, ficou esse rótulo”, posiciona.
Mas nem por isso o autor pede a ‘deixa’ para o humor. No espetáculo ele brinca, ao puxar um play back no rádio para dizer que, certa vez, parou em um posto de gasolina e o cara lhe perguntou: “Você não é daquela dupla Rolando & Boldrin”.
“As pessoas confundem, mas eu gosto de Noel (Rosa) e Ataulfo (Alves) desde moleque e sempre fui misturando. E meu sonho era poder mostrar em um programa de televisão que o Brasil não era só samba. Eu tinha bronca de críticos, do Rio de Janeiro principalmente, do Nelson Motta, do Cabral, que são amigos meus, porque escreviam que Brasil parecia ser só Brasil com o samba. Mas chegou um nordestino meio louco e impôs a sanfona com o baião, o Luiz Gonzaga. E ele insistiu até mostrar que o Nordeste tem uma música própria e bem brasileira. E meu programa é isso”, define.
Em seu programa não entra o sertanejo ruim que, para ele, “existe só pra vender disco”. Ele comentou que no Sr. Brasil, assim como era no Som Brasil desde o programa na Globo – que estreou em agosto de 1981 na TV, ouve os discos e, gostando, a música e tendo a ver com a proposta cultural do País costuma convidar para a gravação. “É uma questão de princípio, só isso. A Elis Regina ia lançar um disco dela pela Som Livre no Som Brasil na semana em que ela morreu. Não me deixei sofrer com interferências que ferissem meu programa. Eu cumpri um ciclo e hoje o programa na TV Cultura tem muito mais sucesso do que teria na Globo”, diz.
Certa vez, o jornalista e depois deputado Artur da Távola escreveu que ao assistir ao Som Brasil, nas manhãs de domingo na Globo, tinha a sensação de que uma locução entrara dizendo: Ficaremos fora do ar por uma hora... Boldrin tem a noção de que era um ‘corpo estranho’ naquela programação. “Meu programa feria a imagem da Globo. Eu fazia direção cênica, caracteres, produção, edição, artistas, tudo. Era uma outra linguagem em tudo, um padrão que não era o deles”.
O programa que hoje Rolando comanda tem o mesmo formato, conteúdo. “Mudou a tecnologia no modo de fazer, a ideia de teatro, não tem nenhum microfone direcional, tudo de lapela, para não atrapalhar a imagem plástica do programa e o cenário com objetos de artesanato que a Patricia Maia cuida muito bem”, menciona.
Mas ele ressalta que os causos, as prosas e as músicas brasileiras, “é tudo igual”. “O áudio é limpinho hoje, sem ruído, porque hoje nós remixamos o som da gravação. Eu faço o roteiro de edição. Levo a fita em casa ainda (VHS) e faço o roteiro final, dos cortes e ajustes, do copião. Hoje eu já mando por Internet para o editor (risos)”, complementa Boldrin.
Nélson Gonçalves |
|
|
“Sem ser saudosista, na minha escola tinha orfeão. Hoje deveriam dar aulas de músicas e ritmos brasileiros”, defende Boldrin |
Quando pegou carona em um caminhão que ia de sua terra natal, São Joaquim da Barra, a São Paulo, quando tinha apenas 16 anos, com violão integrando a pequena bagagem, Rolando Boldrin só sabia que gostava de cantar. Hoje, com 54 anos de carreira, ele relembra, quase em profissão de fé, que o destino não lhe colocou nessa estrada por acaso.
Seu desejo, que Deus continue lhe dando energia para continuar a difusão cultural de seu País por outros longos anos e que, nesse tempo que lhe resta nessa terra de passagem, a cultura nacional seja respeitada, valorizada. De sua parte, na aparição semanal na tela da TV Cultura com o “Sr. Brasil” ou nas andanças por teatros no Interior, Boldrin renova sua missão e pede: “Que os artistas continuem sua ‘batalha’ mostrando sua arte em teatros, clubes, bares e praças. Sempre haverá espaço para o que é bom e brasileiro”.
Na entrevista, ele fala sobre os diferentes Brasis que estão em sua trajetória:
Jornal da Cidade: O Boldrin cantador experimentou a dura peregrinação do Interior para a Capital para tentar espaço e divulgar suas músicas. Por comparação ou não, como avalia as portas abertas e fechadas atuais para os novos cancioneiros?
Rolando Boldrin: Quando comecei minha carreira profissional, em 1958, era tudo ao ‘vivo’ e em preto e branco. Foram dias difíceis de testes em rádio e pequenas participações em teleteatro da TV Tupi de SP. A música foi uma consequência. Eu sou um ator que canta e que sempre gostou da nossa cultura brasileira.
JC: Qual sua opinião sobre o mercado fonográfico e o formato de programação das rádios comerciais no Brasil?
Boldrin: Sinto que, com as novas tecnologias (Internet etc), o mercado fonográfico mudou muito. Hoje o artista está mais independente das grandes gravadoras daqueles tempos. E isso é positivo. A programação das rádios, de um modo geral, obedece o modismo das músicas apelativas. O que é uma pena, mas temos muitos batalhadores da nossa verdadeira música brasileira.
JC: Ensinar música brasileira na escola, desde cedo, faria diferença nesse processo?
Boldrin: A música na escola é fundamental. Sem ser saudosista, mas no grupo escolar do meu tempo tinha “orfeão” e, também, se ensinavam hinos patrióticos. Hoje deveriam dar aulas de músicas e ritmos brasileiros.
JC: O que sugere aos novos artistas, compositores, para
tentar sair do anonimato?
Boldrin: Que esses artistas continuem sua ‘batalha’ mostrando sua arte em teatros, clubes, bares e praças. A luta deve continuar. Sempre haverá espaço para o que é bom e brasileiro.
JC: O modismo e apelo popular já fizeram de tudo na música. O que mais esperar das produções musicais no País?
Boldrin: Nós, no Brasil, sofremos há muito tempo as influências de música estrangeira. E isso atinge todas as vertentes da nossa música. Houve a época dos boleros, rumbas, tangos, country e outros. A música ‘caipira’ virou sertaneja e obedece esta mesma influência, hoje apenas mais acentuada com a música americana. Mas toda forma de expressão cultural autêntica é válida para o povo fincar mais suas raízes de Brasil
JC: O que representa para a divulgação da música caipira a morte de Inezita Barroso e seu papel no “Viola minha viola”?
Boldrin: A Inezita era uma atriz, cantora, de muito talento. Ela fez também cinema no começo de carreira e gravou sambas e seu gosto pela cultura regional e seus estudos aprofundados neste tema fizeram com que ela se dedicasse de corpo e alma a este lendário programa de violeiros da TV Cultura, o “Viola minha viola”. Seu carisma junto ao público através do programa era inegável. Os violeiros que nestes 35 anos passaram por aquele palco, sob seu comando, devem estar sentindo muito sua falta.
JC: Entre os principais analfabetos compositores caipiras, não há necessidade de reconhecer nomes como Lourival dos Santos, que compôs mais de 1.500 músicas, analfabeto, fazia de cabeça e a mulher colocava no papel” (autor de Rio de Piracicaba)?
Boldrin: Devo dizer que não sou um estudioso da cultura caipira. Apenas cultivei a vontade de sentir o sabor de uma moda de viola, cantando em dupla com um irmãozinho, quando era garoto, nos microfones da minha cidade no Interior de SP. O que faço hoje é alinhavar projetos que enalteçam os valores das músicas e ritmos do Brasil inteiro. E isso desde de um samba de partido alto a uma singela moda de viola.
JC: Você subiu ao palco com Amácio Mazzaropi. Qual sua opinião sobre a caricatura do caipira que demarcou esse autor e a recolocação do papel do caipira na formação e tradição oral do Brasil?
Boldrin: O ator Mazzaropi expunha um retrato do Jeca esperto e puro. Devem existir desses tipos ainda, em algum lugar do País. Quanto a imagem negativa do ‘caipira’, os tempo são outros. Sobre a essência do jeito simples de falar e trejeitos do nosso caipira, devemos lembrar sempre de Mário de Andrade e de uma música criada por ele chamada Viola Quebrada. Nela, ele respeitou o linguajar do caipira, o que representa um ato professoresco em louvor à cultura interiorana de sempre.

