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Profissões "raras" guardam memória ferroviária

Thiago Navarro
| Tempo de leitura: 7 min

Alex Mita
Marcos Luiz de Souza e Douglas Ruzon ajudam a manter o patrimônio ferroviário bauruense

Antes comuns em Bauru, as profissões de maquinista e foguista são quase desconhecidas para muitos jovens. Responsável pela condução das locomotivas e composições ferroviárias, os maquinistas ainda podem ser encontrados nos trens de carga, que, na região central do Estado, estão sob a concessão da empresa Rumo ALL.

Já os foguistas, que eram os profissionais que cuidavam da caldeira das antigas máquinas a vapor, já não são contratados pelas companhias, pois atualmente as locomotivas são movidas a diesel ou por energia elétrica. Porém, em Bauru, há dois profissionais que estão na ativa e guardam com orgulho esse passado áureo da ferrovia brasileira.

O foguista Marcos Luiz de Souza, 47 anos, é o único na ativa nesta função em toda a região de Bauru. Como hoje quase não há mais máquinas movidas a vapor, são pouquíssimos profissionais foguistas em todo o Brasil – estima-se em, no máximo, algumas dezenas, e em cidades que mantém este tipo de locomotiva, como é o caso de Bauru. Já o maquinista Douglas Ruzon, 28 anos, é o único na cidade que opera uma máquina a vapor – os demais, que são funcionários da empresa concessionária, conduzem locomotivas a diesel.

Marcos e Douglas trabalham há um ano e meio para a Prefeitura de Bauru, mais especificamente na Secretaria Municipal de Cultura. Ambos entraram no cargo através de um concurso público realizado em 2011, e são os responsáveis pela manutenção da Maria Fumaça que pertence ao município, fabricada em 1919, na Filadélfia (Estados Unidos), e que, por muitos anos, fez parte da Noroeste do Brasil. Até 2013, havia passeios mensais entre as antigas estações da Noroeste e da Paulista com a Maria Fumaça, em um percurso de 800 metros, que depende de algumas providências para ser retomado (leia mais ao lado).

Formação

Marcos sempre esteve envolvido com a ferrovia. “Sou ferroviário desde os 14 anos. Fiz curso de eletricista no Senai, e, em setembro de 1983, entrei na Fepasa, onde fui mecânico, eletricista e depois supervisor. Com a privatização da malha ferroviária, saí em 2006, e, quando abriu o concurso na prefeitura, passei e fui chamado para trabalhar como foguista”, comenta o profissional.

Com a vida sempre ligada à ferrovia, Marcos chegou até a jogar nas categorias de base do Esporte Clube Noroeste – time que foi fundado por ferroviários – no final dos anos 1970. “Sempre gostei de tudo o que é ligado a ferrovia e também joguei no time júnior do Noroeste em 1978, ano em que o time jogou o Brasileiro e tinha no elenco o Jairzinho e o Lela, entre outros. Até hoje sempre que posso vou ver os jogos do time”, recorda. Sobre o fato de ser o único foguista em atividade em Bauru, Marcos acredita que, quando os passeios da Maria Fumaça forem retomados, haverá mais gente interessada em conhecer a função. “Existem alguns outros foguistas em cidades que tem máquina a vapor, mas ainda não fui conhecer nenhum. Acho que a hora que voltar a ter passeio, vai despertar a atenção tanto do pessoal em Bauru, como também de colegas em outras cidades, talvez permitindo um intercâmbio para conhecer mais”, analisa.

Mesmo sem os passeios mensais da Maria Fumaça, a composição requer manutenção, trabalho executado pelos dois profissionais. “Não é porque não está andando que pode deixar parado. A manutenção é constante. Entre uma e duas vezes por semana, a caldeira é ligada e verificamos todo o funcionamento, além de fazer a limpeza”, explica o maquinista Douglas Ruzon.

DESDE A INFÂNCIA

Douglas conta que sempre gostou de trens, desde a infância. “Quando eu era criança e vinha com a minha mãe ao Centro da cidade, eu sempre queria passar perto da Estação, conhecer. Depois fui fazer Senai e trabalhei em oficina, até ter este concurso, quando entrei para ser maquinista”, cita.

A seleção de um maquinista e um foguista pela prefeitura ocorreu em dezembro de 2011, e atraiu 60 candidatos no primeiro caso e 47 no segundo. As provas exigiram conhecimentos a respeito da história da ferrovia, da malha ferroviária em Bauru, e também da parte prática dos cargos. A contratação tanto do maquinista quanto do foguista foi em janeiro de 2014, e os dois concursos ainda têm validade até janeiro de 2016, porém, a Secretaria Municipal de Administração, responsável pelos processos, afirma que não há nenhum pedido da Secretaria de Cultura para contratar mais profissionais.

Curiosidade

A presença da Maria Fumaça na gare da Estação Ferroviária desperta a curiosidade de quem passa pelo Museu Ferroviário – que fica ao lado da estação. Após conhecer as salas do museu, os visitantes podem ir até a composição que fica na gare, onde Douglas e Marcos acompanham e explicam o processo de funcionamento da Maria Fumaça, sempre despertando a curiosidade do público.

“O pessoal mais novo vem para conhecer, saber como funciona, como era uma composição. Já os mais velhos sempre se recordam da época em que andavam de trem, das viagens e de quando Bauru tinha uma ferrovia movimentada com trens de passageiro. A gente fez um levantamento e, em 1956, eram 26 trens de passageiro que passavam pela Estação, tanto da Noroeste quanto da Paulista e Sorocabana. Realmente é uma pena ter acabado os trens de passageiro, e mesmo o pouco incentivo que é dado aos trens de carga”, lamenta o maquinista Douglas, que está cursando história na Universidade do Sagrado Coração (USC).

400 graus

Sobre o funcionamento da Maria Fumaça, o foguista Marcos cita que a temperatura da caldeira gira entre 300 e 400 graus Celsius, e que para rodar 50 quilômetros, a locomotiva consome cerca de 5 mil litros de água na caldeira e mais 10 mil litros no tender. Já a quantidade de madeira varia, conforme a qualidade do material, mas, em média, são necessárias três toneladas a cada 100 quilômetros – distância que era percorrida, por exemplo, entre Bauru e Lins na antiga Estrada de Ferro Noroeste do Brasil.

Para ativar a caldeira da Maria Fumaça que está na gare da estação, são usados galhos e pedaços de tronco resultantes de podas de árvores, recolhidos pela Secretaria do Meio Ambiente (Semma).

Volta dos passeios?

Os passeios com a Maria Fumaça ocorreram durante vários anos entre as estações da Noroeste e da Paulista, em um percurso de aproximadamente 800 metros, no Centro de Bauru. De acordo com o secretário municipal de Cultura, Elson Reis, o passeio não está acontecendo por falta de manutenção da linha por parte da concessionária Rumo ALL. “Existe um convênio, da época da concessão ainda, que prevê essa necessidade da empresa manter a linha em condições, o que não vem sendo feito. Já fizemos vários contatos e chegamos a ir em Curitiba (sede da ALL) no ano passado, mas não houve nenhum avanço concreto. Assim que houver condições na linha, queremos retomar os passeios, após as devidas inspeções no trecho, claro”, frisa Reis.

Os passeios ocorriam uma vez por mês, nas manhãs de domingo, e sempre saiam lotados, chegando a levar 500 pessoas ao final de um dia. Procurada pela reportagem, a Rumo ALL afirma que “apoia projetos de preservação da memória ferroviária, e presta a assistência necessária para a viabilização. No entanto, a empresa esclarece que, para que o projeto se realize, é necessário autorização do órgão regulador, atendendo a legislação pertinente. Além disso, deve seguir critérios que possibilitem seu funcionamento em consonância com as condições da operação ferroviária. Reforça ainda que realiza manutenção periódica na linha férrea seguindo  todos os padrões de segurança estabelecidos”, diz a nota.

Serviço

Apesar dos passeios estarem suspensos desde 2013, os bauruenses ainda podem conhecer mais do passado das linhas de trem da cidade no Museu Ferroviário Regional, que fica na rua Primeiro de Agosto, quadra 1, Centro (ao lado da antiga Estação da Noroeste, em frente à Praça Machado de Mello). O horário de funcionamento é de terça a sexta-feira, das 8h30 às 12h e das 13h30 às 17h. Aos sábados, das 8h30 às 13h30. Visitas monitoradas podem ser agendadas pelo telefone (14) 3212-8262 e permitem o acesso às salas do museu e também à gare, onde está a Maria Fumaça.

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