Articulistas

Suruba e Carnaval

Zarcillo Barbosa
| Tempo de leitura: 4 min

Suruba é suruba. Vale tudo. Segundo o Houaiss, a matéria trata de sexo grupal, de orgia. A palavra é de origem tupi. Os caetés e tupinambás, índios que habitavam as costas de Alagoas, costumavam distribuir bordoadas indiscriminadas nos inimigos com seus tacapes. A essa atitude feroz denominavam sur’uba. Conta a história que esses selvagens  comeram (literalmente) o bispo Sardinha, quando a nau que o transportava para Portugal naufragou na Praia dos Franceses. A suruba tem uma ética, uma etiqueta. Quem entra nela não pode reclamar do vale-tudo, como cantava o finado Dinho, da tragicamente desaparecida banda Mamonas Assassinas: “Passaram a mão na minha bunda, e eu não comi ninguém. ”

    

Por essas e por outras, sou obrigado a dar inteira razão ao senador Romero Jucá (PMDB-RR), que nunca fez meu tipo. Na condição de líder do governo no Congresso, ele defendeu que, se é para restringir o foro privilegiado para os políticos, essa nova regra deve valer para todos. Mais de 20 mil pessoas no Brasil desfrutam desse tratamento especial da Constituição: presidente, senadores, deputados, ministros, juízes, integrantes do Ministério Público, governadores e prefeitos. É uma orgia de grandes proporções. O que seria um impropério cometido por Jucá, compará-la a uma “suruba”, na verdade faz o sentido.

     

A proposta de restringir o foro especial dos políticos nasceu no Supremo Tribunal Federal e tomou conta dos meios de comunicação, principalmente por ter, como alvos, os implicados na Operação Lava Jato. O ministro do STF Luís Roberto Barroso defende a limitação do foro a casos relacionados a acusações por crimes cometidos durante e em razão do exercício do cargo. No próximo mês, o tema deve entrar em discussão no plenário da Corte. Virou questão de honra. Os ministros têm todos os poderes para interpretar a Constituição e restringir o foro, sem que necessariamente passe por uma alteração legislativa. Impossível aceitar que um parlamentar que bate na mulher tenha que ser julgado pelo Supremo. Nada a ver com o mandato. Existem mais de 500 processos no STF - 357 inquéritos e 103 ações penais – envolvendo implicados com esse tipo de privilégio.


O instrumento é usado atualmente para fazer chicana, aquela estratégia do advogado malandro para postergar julgamento até que os crimes caiam na prescrição. Já no clima do Tríduo de Momo, o ministro Marco Aurélio Mello mandou soltar o goleiro Bruno, condenado a 22 anos e 3 meses como mandante do assassinato da amante Eliza Samudio, mãe do filho que rejeitou. Segundo a decisão, o réu tem direito à liberdade, até que se esgotem os recursos em todas as instâncias. E dane-se o tal de “clamor popular”.

    

Neste país, o carnaval segue a ideia ritual da transgressão da ordem. Os valores mais abrangentes da sociedade podem ser esquecidos; os pobres podem se organizar para tornarem-se “nobres”; os homens podem “virar” mulheres. Quase tudo é permitido. Possivelmente até a suruba como grand finale das noitadas, considerando-se que existem filas na porta dos motéis. O carnaval contém essa essência igualitária, onde as relações de espontaneidade e afetividade vividas entre quatro paredes extrapolam para a rua.


O espaço da via pública se transforma, temporariamente, no espaço de casa. Bebida, música acelerada e a libido a mil conduzem aos exageros. Moradores de um bairro residencial de Bauru reclamaram que os jovens de um bloco carnavalesco faziam sexo explícito na praça por eles cuidada com tanto carinho. Esse despudor nem foi o prejuízo maior. O duro foi ver casais rolando sobre os canteiros floridos. Simples assim: as flores morrem para que o amor sobreviva.

     

A transgressão trazida pelo carnaval vem desde a Idade Média. Funciona como uma forma de oposição à cultura oficial. Daí ter se transformado na maior festa do mundo e a mais representativa da identidade brasileira. O carnaval proporciona uma espécie de união que aparentemente supre as barreiras sociais de classe, de cor, de gênero, de orientação sexual, etc. Passa a falsa ideia de que todos se encontram no mesmo status, na mesma posição. Essa espécie de segundo-mundo deveria valer só por três dias. Hoje, começa na sexta-feira e nem nas Cinzas termina.  E ainda o mundo oficial quer a coisa dure o ano todo, numa suruba interminável, para a qual nem todos são convidados.

O autor é jornalista e articulista do JC

 

Comentários

Comentários