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Devoção a túmulos de 'milagreiros' é tradição na região

Aurélio Alonso
| Tempo de leitura: 12 min

Malavolta Jr.
Cemitério Portal das Cruzes de Botucatu
Cemitério Portal das Cruzes de BotucatuTúmulo onde Anna Rosa está sepultada tem várias placas de graças alcançadas por devotos

Os cemitérios de várias cidades da região vão receber visitas na próxima sexta-feira (2), Dia de Finados, feriado religioso dedicado a orações e homenagens aos que já se foram. E uma característica são os túmulos transformados em espaços de devoção e de mortos alçados a condições de "milagreiros" de cemitério. A dor, o sacrífico, morte prematura de crianças acabam marcando as comunidades. Essas pessoas que partiram são veneradas popularmente sem, no entanto, terem qualquer respaldo da Igreja Católica pelo processo canônico de beatificação. É uma "santificação" popular que cresce tanto que os túmulos são procurados pelos devotos que deixam oferendas e agradecimentos.

Em Botucatu, o túmulo de Anna Rosa é uma verdadeira devoção. É o mais visitado não somente no Dia de Finados. O pequeno jazigo tem mais de 200 placas deixadas que registram supostas graças alcançadas. No local onde Anna foi assassinada na saída da cidade, no bairro Lavapés, foi erigida uma capela. A história é tão impactante que tem uma música, considerada um clássico caipira, gravado na voz de Tião Carreiro & Pardinho, em 1957, que conta todo o melodrama.

A jovem de 21 anos foi morta e esquartejada em 21 de junho de 1885, porque sofria muita violência do marido Francisco de Carvalho Bastos, o Chicuta, tido como violento e machista. "Ela queria desfazer o casamento, acabou morta. Esse crime causou comoção e foi um sofrimento muito grande. As pessoas procuram o túmulo para evocar milagre. Parte da população tem nela como uma santa, a igreja é comedida nessa questão de milagre", conta o historiador João Carlos Figueiroa.

Há dois livros que resgatam a história: "Anna Rosa e Chicuta", de 1920, escrito por João Correia da Neves, e um segundo de autoria de Moacir Bernardo, atual presidente do Centro Cultural de Botucatu.

Há planos da prefeitura de Botucatu transformar a capela em um projeto de turismo religioso. Há visitantes do País inteiro, conta o historiador. 

Em Jaú, a história de Criolando Rodrigues de Lima, nascido em 1904, tem um mausoléu no Cemitério Municipal Ana Rosa de Paula. Há moradores que pedem graça a ele, deixam oferenda e instalam placas de agradecimento. Ele morreu em 1981.

Conforme o antropólogo Fábio Grossi, nos últimos 10 anos a figura de "Criolando" é de muita devoção popular, embora no mesmo cemitério há outros três túmulos considerados de milagreiros: uma garotinha que faleceu com dois anos, padre Ocelli e o túmulo da "Caveirinha", em que os devotos procuram no cemitério onde tem a imagem do Santo Gabriel - nos pés da lápide tem um crânio em que os devotos colocam os dedos nas cavidades dos olhos e fazem pedidos.

No Cemitério de Lençóis Paulista, o túmulo mais visitado é de Terezinha Vicente que morreu prematuramente e também atribuída a ela graças alcançadas. Esse tipo de devoção é uma característica à formação religiosa católica no país, que agregou aos rituais práticas de suas vivências com outras culturas, como a indígena, a africana e até mesmo práticas pagãs que ainda estavam vivas na Europa do século 16, de acordo com com um artigo científico do professor doutor Lourival Andrade Junior da Universidade do Rio Grande do Norte, que analisou essa questão tomando como estudo de caso "milagreiros" em túmulos de Caicó-RN e Lages-SC, histórias semelhantes com a existente na região de Bauru.

Morte trágica marca mito de Anna Rosa

A morte de Anna Rosa é um caso de crime passional que ainda ocorre nos tempos atuais: o marido a matou porque ela tinha o abandonado por não aguentar mais os maus-tratos. Esse assassinato aconteceu em 1889, no século 19, e comoveu Botucatu. Passados 129 anos, o túmulo dela é venerado no Portal das Cruzes, numa espécie de "canonização" popular.

No jazigo da jovem, pintado de cor de rosa, nesta semana havia  mais 200 placas com nomes de devotos por "graças" alcançadas. Também foi erigida uma pequena capelinha, localizada no bairro Lavapés, onde o corpo foi encontrado na época. A história foi fonte de inspiração para uma música gravada por Tião Carreiro & Pardinho considerada um clássico do cancioneiro caipira.

Nascido em 1855 no bairro Novo, em Avaré, a jovem decidiu abandonar o marido Francisco de Carvalho Bastos, o Chicuta, e conseguiu abrigo em um cabaré de Botucatu. O marido, ao descobrir que ela fugiu, foi à caça, porém não conseguiu reatar o matrimônio. A história comta que ele contratou José Antônio da Silva Costa, o "Costinha", e Hermengildo Vieira do Prado, o "Minigirdo". Esse último se faz de bom homem e se oferece a dar cobertura para ela deixar o marido. Tudo não passava de uma emboscada combinada com Chicuta.

Quando atravessava o ribeirão Lavapés, na estrada de acesso a Pardinho, ela avista pela última vez Chicuta e é assassinada e esquartejada. O mandante e os autores do crime foram presos e condenados pela Justiça. Após cumprir a pena, um deles morreu de varíola, outro esmagado ao cortar uma árvore e Chicuta sofre um acidente com carro de boi e teve a cabeça separada do corpo. "No lugar onde ela morreu, a cidade erigiu uma cruz e uma capelinha, sendo assim onde se evoca solicitação de milagre. A primeira capela foi feita de pau a pique. A atual, e bem antiga, é de alvenaria", conta o historiador João Carlos Figueiroa.

Na opinião dele, a devoção a Anna Rosa ocorreu porque o crime foi muito violento. "Houve comoção. A população acabou escolhendo um local para orar, não só em memória a ela, mas destinando pedidos. No túmulo tem uma quantidade de placas grande", cita. Para Figueiroa, a população escolhe esses milagreiros pelo sofrimento. "O caso da Anna Rosa foi brutal, um sofrimento pela morte esquartejada. A população vê nela uma santa, no entanto, a igreja católica é comedida nesse particular, tanto é que não celebrava missa nessa capelinha. Só recentemente passou a fazer celebrações de missa no local. Lá chama-se Capela da Santa Cruz de Anna Rosa. A igreja pode permitir celebração, por ser devoção à Santa Cruz. O fato de ser Anna Rosa é um complemento", conta.

Figueiroa relata que existe um grupo de pessoas que está levantando assinaturas para buscar um pedido de beatificação, primeiro estágio para buscar a santidade. "Está ainda incipiente", explica.

Arquivos de três cemitérios são informatizados em Botucatu

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Décio de Campos é o administrador do Cemitério Municipal Portal das Cruzes de Botucatu   

O Cemitério Portal das Cruzes, que ostenta três altas torres encimadas por cruzes, dá uma dimensão arquitetônica da principal necrópole que passou a ser ocupada a partir de 1893, com o advento da República. Foi quando acabou a divisão que havia de cemitérios para católicos e presbiterianos. Com mais dois cemitérios (Vitoriana e Cemitério Jardim), todo o sistema de busca para informações de pessoas sepultadas foi informatizado em 2011.

É possível, por meio do site disponível na Internet, que qualquer pessoa tenha acesso. Mas é preciso nome ou sobrenome para obter dados.

O administrador do Portal das Cruzes, Décio de Campos, explica que o sistema facilitou a busca de informações. Antes, todos os dados ficavam em livro. Ele está na função há 27 anos e conhece muito das histórias do local.

A Prefeitura de Botucatu, por meio da Seção de Processamento de Dados, concluiu a digitação dos dados de aproximadamente 80 mil sepultamentos realizados nos cemitérios Portal das Cruzes, Jardim e de Vitoriana. O trabalho, iniciado em junho de 2010, foi realizado de forma meticulosa, com a utilização de um sistema de banco de dados e a colaboração de estagiários que ficaram responsáveis por transferir os dados de cada óbito para os computadores. Atualmente está sendo adotado um sistema mais moderno de arquivamento por meio da Internet.

No Cemitério Jardim, o número de sepultamentos é menor, cerca de 7.300. Os dois principais cemitérios da cidade, que não contavam com recursos de informática, foram equipados com computadores e impressoras interligados à prefeitura. 

De acordo com o historiador João Carlos Figueiroa, a informatização ajudou muito para as pesquisas e ficou ao alcance de qualquer botucatuense que pode levantar os dados de sua casa acessando o site.

Devoção ultrapassa leis canônicas

Há um artigo científico disponível na Internet que aborda o motivo de túmulos de cemitérios católicos brasileiros serem transformados em espaços de devoção com os mortos sendo alçados a condição de milagreiros, de autoria do professor doutor Lourival Andrade Júnior, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Ele tomou como exemplo esse tipo de devoção numa análise de dois casos de milagreiros em Caicó (RN) e Lages (SC), que têm muita semelhança com o que ocorre nos cemitérios da região.

No texto, o professor cita, por exemplo, que o "catolicismo no Brasil deve ser visto como um emaranhando de práticas e gestos simbólicos que ultrapassam as leis canônicas". Essa "santificação" de milagreiros não é reconhecida e nem passa pelo processo de beatificação da Igreja Católico, que é muito rigoroso. 

O professor cita ainda no texto "Cemitérios e túmulos: espaços de devoção" que isto se deve, em grande parte, à formação religiosa católica no País, que durante séculos se deu a partir da falta de religiosos e a tarefa de evangelizar e de seguir as regras dos cultos fossem realizadas por leigos, que por não possuírem uma formação rígida, acabaram agregando aos rituais católicos práticas de suas vivências com outras culturas, como a indígena, a africana e até mesmo práticas pagãs que ainda estavam vivas na Europa do século XVI.

Outro detalhe apontado pelo professor de como ocorre a devoção a determinadas pessoas é a morte trágica e a ideia de pertença, ou seja, o morto de alguma forma conhecia o espaço em que foi tornado milagreiro, criando entre o morto e devoto uma intimidade profunda. 

Jaú incorpora a devoção ao folclore

Jaú tem uma forte história de túmulos "milagreiros". O Cemitério Municipal "Ana Rosa de Paula" foi inaugurado no dia 16 de outubro de 1894, antes esta área pertencia a Fazenda Óleo. Essa necrópole tem verdadeiras obas de arte, algumas estátuas encomendadas por famílias abastadas a artistas e escultores europeus. Atualmente, o túmulo mais visitado é de 'Coriolano' que ganhou um mausoléu, mas antes de sua história ganhar devoção com sua morte nos anos 80, já havia pelo menos mais três túmulos procurados pela população para agradecer a uma graça alcançada.

Os outros jazigos considerados de milagreiros são de uma garotinha que faleceu com dois anos, padre Ocelli e o túmulo da "Caveirinha", que as pessoas procuram no cemitério onde tem a imagem do Santo Gabriel - nos pés da lápide tem um crânio em que os devotos colocam os dedos nas cavidades dos olhos e fazem pedidos. 

A sepultura de "Criolando" virou uma capela aonde é reverenciado pela população como "milagreiro". Ele andava num cavalinho de madeira e visitada as famílias da cidade, em qualquer hora do dia e da noite. Quando ele chegava com uma flor e entregava para a família, era certeza de que alguém tinha morrido.

O antropólogo e diretor do Museu de Jaú, Fábio Grossi dos Santos, relata que "Criolando" praticamente foi incorporado ao folclore da cidade, que começou a crescer a devoção, a partir do falecimento do morador na década de 80, quando começaram a ser registradas as primeiras graças alcançadas.

Grossi é autor de um texto que documenta a história do milagreiro no livro "Quem conta um conto...Onze visões do sobrenatural". "Isso não é um fenômeno da nossa região, mas mundial, restrito ao universo católico, do qual tem os santos canonizados e os populares. Eles acabam sendo eleitos por conta de fé e regionalismo. No Brasil tem o padre Cícero no Ceará, onde tem estátua e culto muito forte. Essas pessoas são eleitas pelas características locais. O padre Cícero tinha forte apelo devido a relação com a comunidade em que ele vivia. Isso traz a conexão com o culto popular", cita Grossi.

O antropólogo explica que crianças  falecidas prematuramente é tipo de devoção que existem em vários cemitérios brasileiros, onde nesses túmulos as pessoas alegam ter conseguido graça e deixam oferendas e flores. "As crianças na visão católica cristã são tidas como figuras de pureza. Uma menina que morreu com dois anos, como é um dos casos de Jaú, o túmulo é muito procurado, porque no imaginário popular ela nem foi apresentada ao pecado. Então, se você ver o livro de Óbito lá se diferencia adulto de criança, citada como anjo. A pessoa vai ao cemitério e vendo um túmulo de criança, entende como símbolo de pureza, faz um pedido e, se isso é alcançado, deixa uma oferenda, geralmente um brinquedo. Isso vira um culto", explica.

No entendimento de Grossi, não é exclusivo do Brasil essa cultura popular pelo santo milagreiro. "Há muito na Itália e em Portugal. É um fenômeno que tem muito a ver com o universo católico e não com o evangélico que não cultua santos. Na América Latina também tem esses milagreiros populares que não são canonizados pela igreja" cita.

Túmulo de criança é mais visitado em cemitério municipal de Lençóis

Em Lençóis Paulista, o túmulo mais procurado para visitas, onde deixam oferendas ou placas de graça alcançada no Cemitério Municipal Alcides Francisco, é o túmulo de Terezinha Vicente, morta aos 9 anos em 1954.

Igual ao que ocorre em Jaú, onde também tem um túmulo de uma garotinha morta prematuramente, no dia de Finados é o mais procurado pelos lençoenses e tem uma devoção popular. Sempre está pintado de cor de rosa e no jazigo há várias placas, geralmente algum devoto faz a manutenção.

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Túmulo de Terezinha Vicente é o mas visitado no Cemitério Alcides Francisco, em Lençóis 

O agente de Cemitério Luiz Antonio Campos, o Belo, está há 19 anos na atividade e conhece bem as histórias do local. A causa da morte da menina foi natural, o que mais deixa todos intrigados. "Quando foi feita a exumação, o corpo da menina estava intacto, perfeito. O coveiro fechou e daí em diante passou a receber visitas de pessoas que resolveram acender vela. Foi até feito um pequeno monumento. As pessoas passaram a citar possíveis milagres. Já pintei uma vez, porque uma pessoa disse que recebeu uma graça e resolveu retribuir", relata Belo.

Houve boatos que alimentaram a lenda urbana de que a menina havia sido violentada e morta, mas o agente do cemitério conta que conversou com familiares e parentes dela. "A morte dela foi por causa natural e não houve nada disso. O povo fala em milagre pela forma que ela morreu. É o túmulo mais visitado disparadamente no cemitério. As pessoas relatam que conseguiram graça. No Dia de Finados passa mais gente lá dos que nos outros túmulos", contou.

 

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