Wagner Teodoro

Meu malvado favorito

29/11/2020 | Tempo de leitura: 4 min

O ano era 1986. Naquele junho eu juntei os trocados que tinha no bolso e entrei em um bar no meu bairro para comprar goma de mascar. Comprei alguns Ping Pong, não me lembro o sabor, mas isso não era o importante. Eu estava prestes a iniciar minha coleção de figurinhas da Copa do Mundo do México. A figurinha vinha enrolada diretamente no chicle de bola e tinha o perfume do aroma artificial daquela guloseima. Mas isso também não era importante. A minha expectativa era para o que viria quando eu a abrisse. E abri. E vi um cara de camisa azul e branca olhando para mim. Que euforia! A minha primeira figurinha era a mais ambicionada por todos os meninos: Maradona.

Saí dali em uma felicidade só. Maradona era "a" figurinha. Aquela que a gente não casava no bafo nem com dez, 15 ou 20 contra. Aquela que a gente não deixava amassar. Aquela que a gente iria guardar para a posteridade. Para a minha geração, Maradona foi o primeiro superstar. Eu obviamente assisti ao Mundial torcendo fervorosamente pelo Brasil. Sofri quando nós paramos na França nos pênaltis. A Argentina, de Maradona, não parou.

Contra a Inglaterra, eu, na infância, não tinha noção do contexto geopolítico do confronto. A guerra das Malvinas era uma tênue lembrança. Recordo-me de ter "torcido", na minha inocência, para a Argentina no conflito bélico que eu via nos noticiários da TV. Mas no gramado eu torci para a Inglaterra. E Maradona fez o que todos sabemos. Golpeou, se vingou dos ingleses, com o punho cerrado e com o talento. O segundo gol me maravilhou.

Na final, torci para a Alemanha. Não deu. Argentina campeã. Maradona se tornou um deus do futebol. O Napoli virou o time dos meus amigos no Campeonato Italiano. Em uma época em que o Calccio tinha os maiores craques do planeta. Eu nunca torci para o Napoli, apesar do Careca jogar lá.

Passional; genial

Veio a Copa de 1990. A Argentina desmantelada, enfraquecida. Eu vibrando com a derrota para Camarões. E o torneio segue. E a Seleção Brasileira cruza com os hermanos no mata-mata. Naquela época, lembrei da primeira vez que tinha visto Maradona contra o Brasil. O Pibe estava desferindo um chute no estômago de Batista e o time de Telê ganhava de três.

Na Itália foi diferente. Dominamos. Mas o baixinho enjoado me arrumou uma jogada entre uma legião de marcadores de amarelo e encontrou Caniggia. Fim. Depois do jogo, o cara ainda ficou festejando ao lado do gramado com a camisa brasileira. Insuportável este tal de Maradona. Desta vez, a Alemanha não me decepcionou. Mas foi quase. Ufa!

Em 1994, ele não estaria lá. A magia tinha acabado por volta de 1991. Escândalos, o vício em cocaína escancarado e o homem estava completamente fora de forma. Mas ele renasceu. Emagreceu de maneira extraordinária e começou a comandar seus companheiros jogo a jogo. Gol e o olhar desafiador para a câmera. Mas a última imagem foi a saída de campo para o antidoping.

Gênio maldito

Porém, o período que separa o coice em Batista, em 1982, passando pela jornada épica de 1986, a demonstração de força de 1990 e chegando ao final trágico de 1994, me deram a maturidade para compreender o que significava Maradona. E respeitá-lo. Com o passar dos anos, fui além. Ganhei a perspectiva de ter tido a honra de poder tê-lo visto em ação, de desfrutar de seu talento quase inesgotável, mesmo com as "maldades" contra o Brasil. Do respeito, passei a admirá-lo. E muitas vezes a ter identificação com Maradona. Porque El Diez é o mais humano dos deuses do futebol. Um gênio maldito da bola. Maradona está ao lado de artistas como Lima Barreto, Edgar Allan Poe, Van Gogh, Syd Barrett, Amy Winehouse… O talento quase inesgotável convivendo com os demônios internos.

Sempre foi transgressor, rebelde, intenso, corajoso. Desafiou o establishment e encarnou de maneira perfeita a tragédia e a glória que é ser latino-americano. Diego e Maradona, homem e deus da bola, são indissolúveis. Lá em 86, ainda consegui uma segunda figurinha de Maradona. Estava mesmo iluminado. Uma delas meu irmão rasgou em um momento de fúria (que tragédia!) A outra, mesmo com meus cuidados, se perdeu no passar do tempo. O mesmo tempo, defensor supremo, que parou o argentino na última quarta (25). O ser humano Diego e a divindade Maradona. Um só. "Errei e paguei, mas o que fiz em campo não se apagou", certa vez ele disse. Tem razão, meu malvado favorito.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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