Wagner Teodoro

Apenas um curumim

24/01/2021 | Tempo de leitura: 4 min

O jovem índio Jari, órfão que vivia com o homem branco, volta à floresta em busca de uma nova família indígena, guiado pelo velho pajé Tamãi. Últimos remanescentes de sua tribo, se lançam em viagem a uma terra onde a relação entre os povos seja mais harmônica. Pajé e curumim empreendem uma jornada de vivências profundas que transcendem o simples fato do deslocamento no espaço para o lugar de paz e dignidade que almejam. Este é o mote do clássico infanto-juvenil "Apenas um Curumim", de Werner Zotz, o segundo livro que li na vida, ainda criança. É uma obra que suplanta a condição de qualquer classificação e tem uma sensibilidade tocante na relação do velho índio que ensina o curumim pela experiência.

Após a referência, vou buscar uma reminiscência da leitura que fiz há décadas. Em determinado momento, o pajé e o curumim estão na ubá que construíram em meio à corredeira de um rio. O jovem se esforça contra a violência das águas e o velho apenas observa até que o menino se dê por vencido. Aí vem o ensinamento de que mesmo na correnteza existem os vãos de calmaria. Não pude deixar de lembrar deste trecho do livro assistindo ao jogo do São Paulo contra o Internacional no meio de semana. O "velho índio" Abel Braga dando uma lição ao "jovem índio" Fernando Diniz. Sim, porque Abelão escancarou que existem maneiras e maneiras de vencer. Posse de bola: São Paulo, 71%; Inter, 29%. Finalizações a gol: São Paulo 5 x 7 Inter. O mais importante. Gols: São Paulo 1 x 5 Inter.

Manjado

Abel Braga armou sua equipe para neutralizar o São Paulo. Desde o primeiro minuto houve marcação pressão na saída de bola, forçando erros de passe e recuperando a posse próximo à área tricolor. Não é novidade. A "saidinha" é um dos pilares do esquema de jogo de Diniz. Iniciar as jogadas sem quebrar a bola, sem chutão para frente, com toques desde a defesa atrai a marcação adversária e abre espaços para a evolução da equipe, para as triangulações, a troca de passes que é a base do que o treinador propõe. Mas congestionar o setor onde a bola está se tornou antídoto para a letalidade que o São Paulo apresentava aos adversários.

Contra o Inter, o São Paulo sofreu com a marcação sufocante e entregou gols. Falhas justamente na saidinha. A lição do pajé Abelão ao curumim Diniz é que é preciso saber parar de remar contra a correnteza e buscar a calmaria. A teimosia, forçando onde não é possível evoluir, deve ser evitada. É necessário ter alternativa ao que ficou manjado para todo mundo. Basta observar quantos gols o São Paulo sofreu assim nos jogos recentes.

Dá tempo?

Fernando Diniz fez ajustes à sua ideia de time e jogo ao longo de seu atual trabalho no São Paulo. Abriu mão de um meio-campo calcado em total mobilidade, sacando Tchê Tchê e colocando Luan, um volante de contenção, como titular. No ataque abandonou o conceito de jogar com pontas abertos e apostou na dupla Luciano/Brenner. O São Paulo adquiriu segurança defensiva, encorpou e ganhou moral. Mas é preciso variações, porque o campeonato é muito dinâmico. Decifrada, a equipe entrou em queda na reta final e, junto com isso, voltaram velhos problemas como dificuldade para assimilar os gols sofridos e reagir. O São Paulo, de time que virava jogos, passou a exibir uma fragilidade ao ser vazado. E a pressão cresce.

A pergunta é: dá tempo de corrigir, arrumar alternativas, mudar a proposta, para ainda brigar pelo título brasileiro? Diniz viveu momentos de extrema baixa no comando da equipe e conseguiu soluções, apostando na base e dando voltas para remontar a mesma dupla de zaga. O Brasileirão é impiedoso. A disputa está acirrada. Os adversários pelo título engrenam. E existe uma sombra de profunda reformulação no clube (o treinador terá tempo no cargo?)

Talvez seja o caso do revolucionário Diniz buscar um pouco de conservadorismo - já o fez no caso de Luan. Só em certos momentos e situações. Apenas em determinados aspectos. Sem perder a identidade e essência do que propõe, sem abrir mão de jogar futebol. Entender que o resultado vai lhe trazer o ambiente para desenvolver suas ideias com mais tranquilidade. Que está em um gigante que não ganha títulos há oito anos. "Procure os atalhos na correnteza", aconselharia o velho Tamãi. Será possível?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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