Cultura

Olhar agudo de arrudA tece poesia com ritmo e significado

Amador Ribeiro Neto
| Tempo de leitura: 2 min

Gregório de Matos, celebrando a unidade, apregoa num soneto - "o todo sem a parte não é todo/ a parte sem o todo não é parte". Século 16, o mundo busca a unidade em Deus, ou em alguma coisa. Mas quer ser uno.

O poeta arrudA - com esse A maiúsculo mesmo -, em seu recente "Fragmentos de uma Canção Impossível", assume o esfacelamento de nossos tempos e a canta "à parte/ toda essa apatia/ à parte/ em toda parte essa tal/ de tecnologia/ à parte/ esse desgaste natural/ de ambas as partes/ nem sempre tão igual/ à parte/ um e outro desastre".

E segue falando de nossos desastres ecológicos, econômicos e pessoais num mundo sem eixo, à parte, mas em toda parte, fragmentado.

O livro é uma obra pensada desde sua estrutura até o projeto gráfico. Constituída por 50 poemas em sete partes, cada uma delas tem sete poemas, mais um de abertura.

Na literatura, como nas artes, o número sete, cabalístico, sempre é impregnado de significados, bem como o um. A ideia de infinito e de unidade, nesta ordem, permeiam poemas e projeto gráfico.

Os poemas se inter-relacionam num movimento elíptico interno em que cada qual possui um centro móvel que se comunica com os centros dos demais. À distância, as elipses simbolizam planetas em movimento numa órbita.

Desta feita, a leitura dos poemas se torna intercambiável e os temas, interpenetráveis. Como se depreende do fragmento citado, a musicalidade não é mero recurso metafórico do título - ela habita o corpo do poema como uma camada de significação e beleza.

SEM TÍTULO

Os 50 poemas não têm títulos. São numerados de um a sete dentro de cada parte. Mas podem ser lidos independentemente. "Nunca/ estivemos/ tão/ próximos/ dos nossos/ ossos/ nunca/ chegamos/ tão perto/ dos nossos/ desertos/ nunca/ fomos/ tão íntimos/ dos nossos/ instintos/ quando/ te olho/ aqui de dentro/ nunca/ fomos// tão infinitos."

Quase sempre são uma longa estrofe seguida por uma pausa e uma segunda estrofe de um único verso que ocorre depois de leve suspensão rítmica.

Linguagem sintética, versos curtos, lirismo com rigor, rica apropriação de imagens do cotidiano, espontaneidade colhida com precisão e simplicidade. Tudo revelado como novidade do primeiro contato.

Assim é o olhar agudo e a mão leve, certeira de arrudA ao recolher estrelas, ruínas, terremotos, tecnologias, ossos. Assim é a semântica do poeta - elementos de natureza, cultura e tempo. Fragmentados e inter-relacionados numa teia que ele tece com suave música e significados.

Seus versos podem ser lidos até o final da linha ou segundo o enjambement, recurso literário em que um verso continua no seguinte pelo ritmo, sintaxe e sentido. Como arrudA despreza a pontuação, o uso do enjambement é um convite ao leitor para que as danças das elipses das sete partes do livro reverberem múltiplas significações.

Num mundo fragmentado tudo se reorganiza plasticamente para o leitor no momento da leitura da poesia. Torna-se uno.

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