Entrevista da semana

Após 40 anos, ela volta a estudar e conquista a OAB

Guilherme Tavares
| Tempo de leitura: 4 min

Com a carteirinha da OAB em mãos, Marina dos Santos Prado das Neves, a Dra. Marina, conhece bem a força de sua perseverança. Após 40 anos longe dos bancos escolares, retomou os estudos, ingressou na faculdade e, aos 64 anos, foi aprovada em um dos exames mais difíceis do País, o da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O que ela ainda está dimensionando é o tamanho de sua representatividade. "Eu era a única mulher negra na cerimônia de entrega", conta.

A advogada perdeu o pai ainda criança, quando morava na zona rural. A distância da escola e a necessidade de ajudar em casa forçaram-na a interromper os estudos na 4.ª série. Nas quatro décadas seguintes, trabalhou como doméstica, em fábricas, casou, teve filhos e netos. Mas sentia-se incomodada por ter interrompido a trajetória escolar. Por incentivo de pessoas próximas, voltou aos cadernos e livros e traçou um plano de vida: recuperar em 15 anos o que havia perdido em 40. Em sete anos, a meta havia sido concluída.

Começava então uma nova etapa: ingressar na Ordem. A perseverança, novamente, foi fundamental. Foram quatro tentativas até ser aprovada. "Quando vi o resultado no site foi choradeira, gritaria. Liguei para todo mundo, mandei mensagem", conta.

A conquista foi muito comemorada pelos principais incentivadores: o marido, Sérgio Pereira das Neves, com quem é casada há 44 anos; os filhos Hélder Paulo e Christian; a nora Fabiana Neves; e os netos Isabely, Hyan e Esthefany Caroline Moreno Neves, 23 anos, bacharel em Direito e aspirante à OAB. "Ela é minha grande inspiração", conta.

Como aquele plano de vida já foi concluído, a advogada traçou outro: fazer uma pós-graduação em Direito Penal. O JC conversou com a Dra. Marina e a neta Esthefany, confira a seguir os principais pontos da entrevista.

Jornal da Cidade - Por que retomar os estudos depois de quatro décadas?

Marina Neves - Fui incentivada por outras pessoas. Tinha uma vizinha que os dois filhos dela voltaram a estudar depois dos 20 anos de idade. Falei pro meu marido: 'eu acho que consigo, vou voltar a estudar', e ele apoiou. Me matriculei no Programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e, em três anos e meio, tinha concluído o ensino médio.

JC - Como a família reagiu quando a senhora decidiu voltar à escola?

Marina - Todos deram o maior apoio! Especialmente da minha nora, Fabiana. Ela chorava comigo toda vez que eu chegava com uma nota dez!

JC - Quando decidiu entrar para o ensino superior?

Marina - No mesmo dia em que saí do EJA. Um pastor da minha igreja cursava Direito e disse para eu me matricular. Assim que terminei o ensino médio, procurei a instituição, na semana seguinte comecei as aulas, isso em 2014.

JC - Então durante o ensino médio já sonhava com o diploma da faculdade?

Marina - Quando eu voltei a estudar no EJA e tive um bom primeiro semestre, fiz um plano para minha vida. Em 15 anos, eu iria recuperar 40 e terminar a faculdade. Foi como o Juscelino Kubitschek, que faria 50 anos em cinco. Planejei me formar até os 65 anos e consegui antes, aos 62. Mas aí, logo depois, veio a OAB e deu vontade (risos)!

JC - Mas por que decidiu pelo Direito?

Marina - Porque eu quero ser uma advogada criminalista. Inclusive planejo fazer uma pós-graduação em Direito Penal para me especializar em Lei Maria da Penha. Desde o ano passado trabalho em um escritório de advocacia.

JC - E o que a senhora diria para quem largou os estudos?

Marina - Não pode desistir, porque agora é muito mais fácil. É só olhar para mim e ver que é possível continuar. Existe sim a falta de oportunidade. Mas também há muita falta de vontade. As pessoas ficam acomodadas, passam a tarde toda na televisão e não querem fazer nada para mudar de vida. Gostaria que as pessoas olhassem para mim e pensassem: 'puxa vida, ela é negra, tem 64 anos, e conseguiu. Porque eu também não posso?'

 JC - E a OAB, como foi quando recebeu a notícia?

Marina - Fiquei ansiosa, acompanhando no site. Quando vi o resultado, foi choradeira, gritaria. Liguei para todo mundo, mandei mensagem! Eu já estava formada, poderia ter pendurado o diploma na parede, mas aí encarei como um desafio. Mesmo assim, só passei na quarta tentativa. A cada vez que reprovava, já começava a estudar para a próxima. E na cerimônia de entrega das carteiras (último dia 8 de julho), fiquei muito emocionada. Eu era a única mulher negra.

Esthefany Neves - Nesse dia, começamos a observar conforme as pessoas iam chegando na OAB. Quando ela levantou, foi marcante, porque era a única mulher preta. Todas eram brancas e mais jovens. Aliás, em um auditório com mais de 60 pessoas, apenas duas eram negras, ela e um homem. Então, é muita representatividade. Ainda estamos entendendo esse papel dela, principalmente aqui em Bauru, é muito importante. Por isso queremos que a história dela chegue a mais pessoas, tenha mais visibilidade, para que não seja apenas uma consciência minha ou dos colegas da cidade.

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