OPINIÃO

O Espelho de Tolstói: o patriotismo 'Made in USA'

Por Luiz Henrique Martim Herrera | O autor é advogado e professor universitário
| Tempo de leitura: 3 min

Em Guerra e Paz, obra monumental que desvendou a Rússia do início do século XIX, Liev Tolstói, com sua perspicácia inigualável, revelou o paradoxo de uma aristocracia espiritualmente estrangeira em sua própria terra. Aqueles nobres falavam francês, idolatravam Napoleão, alheios ao sangue e sofrimento de sua nação. Eram, na essência, colonizados por uma cultura que não lhes pertencia verdadeiramente, distantes da alma de seu povo. Essa elite usava uma máscara civilizatória para ocultar sua falência ética, simulava um cosmopolitismo que era, na verdade, provincianismo, e desprezava o popular, o camponês, o russo.

Hoje, séculos depois, essa observação ressoa com uma atualidade perturbadora no Brasil. Vivemos um paradoxo singular, uma verdadeira "jabuticaba" política, um patriotismo à brasileira: senadores, muitos deles militares e arautos da "pátria", apresentam-se contraditoriamente como anti-nacionalistas. São a extrema-direita - notadamente o bolsonarismo - que, embora se diga patriótica, ama a nação alheia. Adoram Donald Trump mais que Tiradentes, recitam "Deus, pátria e família" com sotaque de Miami e ostentam bandeiras estrangeiras, enquanto desprezam o Brasil real.

A semelhança com a caricatura tolstoiana é brutal. Sob uma retórica de "patriotismo", essa elite brasileira demonstra profundo desprezo por tudo que é nacional. Deturpam o conceito de "família" para agendas excludentes; invocam "Deus" para fins políticos; e usam o termo "pátria" para justificar a submissão a interesses geopolíticos estrangeiros, sacrificando a própria soberania. Sua "liberdade" é o direito de pisar no outro. Aplaudem o golpismo americano - o trumpismo em sua essência -, replicam a farsa de 6 de janeiro, e atacam instituições como o Supremo Tribunal Federal, chegando a bancar sanções contra seus ministros. Celebram a derrocada democrática de 8 de janeiro como um batismo restaurador.

A crítica de Tolstói nos permite ir além. Como o sociólogo Bruno Latour notou em A Pasteurização da França (1984), a história, tal qual em Guerra e Paz, muitas vezes é escrita atribuindo a "grandes homens" - como Pasteur ou Napoleão - o que é, na verdade, resultado de uma movimentação coletiva e caótica. Da mesma forma, o ultranacionalismo performático que presenciamos no Brasil, embora se concentre em figuras idolatradas, é fruto de uma falência coletiva de senso crítico e apego à própria nação, que se manifesta no desprezo por universidades públicas, cultura popular, diversidade social e instituições republicanas.

Esse amor à bandeira alheia, essa guerra santa de verniz verde-amarelo, não é patriotismo, mas servidão estética, moral e geopolítica. Não é nacionalismo, mas um colonialismo às avessas: um que nasce de dentro, em elites que odeiam seu povo e anseiam por um país que não somos. Eles representam a face mais perigosa do desenraizamento, uma elite que, tal qual a aristocracia em Tolstói, se divorcia da própria identidade nacional para abraçar um ideal estrangeiro, condenando-se à irrelevância histórica.

Enquanto isso, o Brasil real segue vivo — nos terreiros, nas escolas, nos quilombos, nas roças, nos becos, nos artistas de rua, nos professores de escola pública, nos catadores, nas mães pretas que choram filhos assassinados. Esse Brasil que não cabe nos slogans, nem nos cultos de poder, é o que segue resistindo, a verdadeira pátria que Tolstói, com sua sensibilidade, certamente teria reconhecido.

Tolstói, com sua aguda ironia, sabia que elites que rejeitam seu próprio povo estão fadadas à ruína. O mestre russo nos ensinou que a verdade da nação reside em seu povo e sua terra, não em simulacros ou imitações estrangeiras. Talvez o Brasil precise, mais uma vez, ouvir a literatura — quando a política se transforma em simulacro, só a arte e a memória ainda falam a verdade. E nessa verdade, a ironia tolstoiana nos convida a reconhecer a nossa própria, complexa e resiliente, identidade.

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