OPINIÃO

(Des)confortos

Por Tito Damazo | especial para a Folha da Região
| Tempo de leitura: 4 min

Fora convidado para proferir uma palestra em encontro de sindicalistas do setor educacional. Seu tema giraria em torno de sua experiência de preso político da ditadura militar de 64. O assunto protagonizara as pautas midiáticas do mundo com a excepcional conquista da cinematografia brasileira de melhor filme internacional do “Oscar” com “Ainda estou aqui”.

Ele e a mulher estavam se devendo uma viagem de comemoração de aniversário de casamento como faziam todos os anos. A data ainda passava em branco. O local do evento lhes parecera oportuno. Uma estância mineral turística. Cidadezinha (não qualquer) paulista de nomeada neste quesito. Conjugação de interesses. A comemoração (tardia) de sequência de anos da quinta década de seu himeneu. Palestra de intervenção prisional dele no terceiro mês em que este conúbio se iniciara. Dois acontecimentos na vida deles impossíveis de se esquecer.

Pois lá se foram os dois anciãos em bom estado de espírito e saúde ao cumprimento de mais duas etapas das prazerosas que a vida lhes concedia. Contribuir com o debate reaberto pelo filme na construção de ações conscientizadoras em defesa do fortalecimento de medidas contra governanças e atuações individuais, coletivas e institucionais dotadas de procedimentos arbitrários. Ditaduras nunca mais.

A outra, distender-se na pura e solta descontração pelos recintos aprazíveis que aquela estância hidromineral proporcionava. Dela propagavam uma lenda ou verdade. O prefeito da cidade passou pelo evento e, ocupando a tribuna, não perdeu a ocasião de dar curso àquela fala corrente: ali, reside a melhor água medicinal do mundo; assemelhara-se a ela a de algum lugar parisiense até há pouco; hoje, não mais; ela paira soberana.

Tempo considerado suficientemente dispensado ao compromisso assumido, deram-se por livres ao descontraído descompromisso. Visitaram uma hospedaria de propriedade de outra instituição associativa de lazer a que também são associados. Comparada com a que os hospedou, aquilo era em tudo depurado requinte. Em certa medida, o sentimento partilhado por ambos era o de um certo constrangimento por serem tributários daquela sofisticação, concomitante à que efetivamente se vinculavam. Esta limitava-se ao essencial conforto e à simplicidade da modéstia. Contradições que as circunstâncias da vida insurgem.

Dali ao parque púbico das “águas sanitárias” “sem igual no mundo”. Um complexo de lazer vistoso a que se atrela comércio de lojas de objetos secundários e de alimentação, fator inextricável desta sociedade mercadológica contemporânea. Imersão, pois, na milagrosa água depuradora; ingestão, pois, daquela preciosidade; alguma coleta para levar a casa.

Tornados ao hotel à tardezinha. Pequeno descanso. À noitinha, ida ao centro da cidade a alguns quilômetros dali. Realizar dois propósitos, assistir à missa dominical, após o que alimentar-se. Essencialmente à mulher, missa era obrigação indiscutível e necessária. Para todos os lugares a que viajavam, todos, e fossem fazer o que tivessem de fazer, havia que se reservar um horário à missa. Ao chegar, a ação primeira era que se localizasse devidamente onde se situava a igreja e se conhecessem os horários de missa.

Foram à das dezenove horas. Como todas as matrizes católicas, se não, a maioria expressiva, sediava-se à praça central. Com certo semblante de suntuosidade e interior não menos. O cortejo dos atores da celebração dando entrada na igreja para início da cerimônia foi anunciado por um toque de campainha. A plateia de fiéis ficou de pé, voltando-se para o corredor por onde ele percorria até o “palco”.

Fechando-o, vinha todo ensimesmado, mãos postas, cabeça levemente inclinada ao chão, paramentas apropriadas, compondo-as um solidéu encarnado, o celebrante-mor. A mulher sussurrou-lhe tratar-se do bispo. Missa importante, arrematou. A grandeza do posto eclesiástico contrastava com a pequenina estatura do celebrante. Não pôde conter o chiste cochichado à mulher que o retrucara com o semblante e olhar de repreensão. Mas era hilário ver o bispo quase todo engolido pelo púlpito que lhe mostrava somente a cabeça um pouco alçada, a pregar o evangelho aos fiéis.

Missa cumprida, percorreram as casas de pasto abertas para as ruas ao derredor da igreja, consultando as opções. Ela optou por uma pizza. Ele um prato feito por um dos dois quiosques de alimentação instalados em situações opostas na praça. A transitar de um ao outro pelo interior da praça, deparou-se, próximo a um deles com dois cachorros sentados no piso, olhos fixos nas mesas dos comensais meio a distância deles. Do outro lado, meio a distância do outro quiosque e da pizzaria em que a mulher se instalara aguardando a pizza solicitada, dois típicos mendigos sentados num banco à penumbra.

Ele buscou sua comida “embalada para viagem” e foi comer junto à mulher. Refeição feita, sobrara-lhe, por excessiva, boa quantidade de arroz e batatas fritas. Ocorreu-lhe levar aos cachorros. A mulher indagou-lhe por que não aos mendigos. Recondicionou a marmita e saiu indeciso do que faria. No trajeto, o coração indicava-lhe os cachorros, a consciência os dois homens. Condoído, acabou cedendo à indicação da mulher.

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