CRÔNICA

Ofertam os frutos do seu quintal 

Por Tito Damazo | Especial para a Folha da Região
| Tempo de leitura: 4 min

Se lembra. E estas lembranças, porque bem lhe aprazem certamente, por dá cá aquela circunstância ou outra, vivem a tornar-lhe. Uma delas é a de que, pensando bem, se poderia considerar a excepcionalidade de um privilégio. Embora menino de classe pobre – a avó paterna e a mãe davam o duro no batedor e no ferro de passar e engomar, para amealharem dinheiro a fim de compor o orçamento familiar –, o avô materno fora sempre administrador de fazenda. 

Aquele homenzarrão, filho de alemães, quando não mais pôde montar a cavalo a ver os serviços gerais na fazenda, aposentou-se com um modesto salário e foi viver na cidade, sem ter amealhado o suficiente sequer que lhe permitisse adquirir uma casa simples para morar. Foi o filho, que também era administrador de fazenda lá nos rincões do Mato Grosso, quem a comprou. O filho assimilou do pai a mesma profissão, mas se podia bem presumir as diferenças nas condições que deviam estabelecer para exercê-la.

Então, o neto mais velho desse ensimesmado avô tinha a concessão, no período das férias escolares, que naqueles idos eram basicamente de três meses, de lá vadiar. O dia começava desde o espumejante leite morno, com café, no curral, tirado do úbere da vaca ao caneco, até a hora em que os pássaros começavam anunciar que se recolhiam para o justo sono de aves, cuja disciplinada labuta diária tecida de cantares e busca de alimentos o exigia.

Um irmão seu, há muito, com aqueles avós morava. Punham-se, então, a quantas pudessem. Sem camisas, descalços (vira e mexe apanhavam estrepe, carrapichos), sob broncas veementes da avó, iam aos cafezais estilingar pássaros. Caçada com trejeitos e presumíveis estratégias para enganar e surpreendê-los. A sorte deles é que a mira dos caçadores era nada boa. 

Cavalgavam os possantes e dóceis Alazão e Baio em pelos e saíam pelos pastos a ver tudo e nada. Dispensavam grande tempo a brincar nas águas do Rio Lambari, onde, de vez em quando, se limitavam a pescar tambiús, embora não dispensassem alguma traíra, que, distraída, passasse por onde seus anzóis iscavam apetitosas minhocas. 

Iam nos roçados em que colonos e os filhos, seus amigos, trabalhavam. Amigos estes que, nos dias de folga, a eles se juntavam naquelas peraltices. Mas quase toda noite se encontravam na casa de um deles para ficarem conversando à toa, contando lorotas, rindo, rindo... Até que os pais os lembrassem do madrugarem para a roça no dia seguinte. Hora de dormir. A lida na roça começava às cinco da manhã.

Eles, porém, não tinham roça para a qual teriam que acordar. Teriam o leite no curral. Se não estivessem com preguiça de sono. Mesmo que lá fossem, podiam, se o quisessem, voltar a dormir. Então, tornados a casa, estiravam-se no chão do alpendre, conversando, olhando o apagão da noite com sua infinita gambiarra de estrelas. Risos constantes decorrentes da conversação à toa. 

Quando, decerto, julgava perturbadores, por excessivos, o avô, num outro canto, em sua espreguiçadeira, também fitando a escuridão de estrelas, admoestava-os, sempre em voz firme com a expressão “Criem modos!” Por seu turno, a avó, na sala, sentada em sua cadeira de balanço à frente de uma cristaleira, sobre a qual um rádio movido a acumulador propalava modas caipiras tocadas pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, fazia serviços de agulha e linha.

Onde estariam todos? Senão os pais, que seguramente já são cinzas, os meninos e as meninas, cujas idades regulavam-se às deles. Sequer dos nomes se lembrava. Nem mesmo deles se lembrava, exceto em circunstância como aquela.

O irmão, como ele, segue. Agora, sendo eles os avôs. Seus avós, seu tio, seus pais, sim, desde há muito, “estão dormindo; estão todos dormindo profundamente”.

Hoje, quando as plantas do seu quintal abundam de frutos, a ponto de se estragarem, mesmo as maritacas em bando a devorá-los com voracidade e esperdício, vem-lhe à lembrança uma prática “ritual” das roças e, bem menos, das pequenas cidades, a qual o sensibilizara de forma a não a esquecer nunca mais. Colhia-se milho. Faziam-se guloseimas dele derivadas?

Uma porção, com prazer, enviada a cada vizinho. Matava-se porco? Uma porção de carne a cada vizinho. Uma comadre dera à luz um rebento? Ia-se visitá-la, levando um frango para o caldo, um pote de algum doce caseiro em calda, ou cristalizado.

Então, decidiram ele e a mulher. A cada colheita dos vários pés de fruta do quintal, compõem pequenas porções e as oferecem aos vizinhos defronte e aos que os ladeiam, e a alguns amigos e amigas mais constantes. Tem sido com mais frequência jabuticaba (tal a prodigalidade da antiga jabuticabeira). Mas também de vez em quando mamão e pinha.

São vizinhos à moda contemporânea: muito pouco se veem, conversam menos ainda e muito casualmente; cumprimentam-se, pelo menos, quando se cruzam; uns chegaram e se mudaram sem que soubessem de uma ou outra coisa. Uns dois ou três são bem antigos.

Mas a oferta das frutas independe de tudo disso. É essencialmente prazerosa a graça de poder realizá-la. Não se espera nada, senão que recebam. Não tem havido recusa. Não sabem como reagiriam ante alguma negativa. 

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