Uma vez, li um depoimento sobre o luto que me marcou. Um pai, já viúvo, criava sozinho a filha adolescente. Numa segunda-feira, ele acordou mais cedo para o trabalho e decidiu deixá-la dormindo. Ela era responsável e acordaria sozinha para ir à escola. Além do mais, a funcionária chegaria em breve se ela perdesse o horário.
Quando ele já tinha começado a trabalhar, recebeu um telefonema da empregada. A filha não acordava. A adolescente teve um mal súbito, morreu dormindo, disseram os paramédicos que atenderam a chamada e os exames posteriores confirmaram.
Meses mais tarde, ele encontrou um colega que não via há anos. Ele perguntou sobre a filha. O pai contou que ela havia falecido. O amigo ficou desconcertado. O pai respondeu: “Não fique chateado, gosto muito quando alguém me pergunta sobre ela. É a chance que tenho de falar sobre minha filha. Enquanto eu falar sobre ela, ela ficará viva. Uma pessoa só morre quando deixamos de falar dela.”
Terminei de ler o texto e pensei: “é isso”. Uma pessoa pode não estar mais entre nós fisicamente, mas enquanto contarmos histórias sobre ela, ela permanecerá viva em nossas memórias, no nosso dia a dia, e até em outras gerações. Seu nome, seu jeito de ser, seus ensinamentos, seus feitos continuarão existindo e divertirão outras pessoas, ensinarão outras pessoas, comoverão outras pessoas.
É esse pensamento que guia os meus dias desde o falecimento do meu pai, há 12 anos, e agora mais recentemente depois da morte da minha mãe, há quase quatro meses.
Converso com eles todos os dias, às vezes em pensamento e, muitas vezes, em voz alta mesmo. Falo sobre eles todos os dias. Minha família, meus amigos, meus alunos e até desconhecidos me ouvem contar histórias sobre eles.
Fiz da minha casa um lar afetivo. Tenho móveis, quadros, livros, peças de decoração, de todas as pessoas que amei e já se foram. Não me causa dor olhar para elas, ao contrário, me dá paz, me faz saber que um dia fui amada, cuidada, especial para eles.
Entendo que o luto é igual uma digital, cada um tem a sua forma de sentir. E ainda que algumas linhas de emoção se pareçam, elas nunca são iguais de pessoa para pessoa, por isso não tenho a pretensão de deixar conselhos para o luto.
Mas penso que posso ajudar contando um pouco da minha experiência. Meu pai e minha mãe morreram de doenças sem tratamento e, portanto, sem cura. Desde o diagnóstico, sabíamos o final. Afinal, não seria assim a vida? A morte não é mesmo a única certeza da vida? Mas vivemos esquecendo disso, né?
Pois bem, quando comentei com um colega professor sobre a doença do meu pai, ele disse: “que bom, vai dar tempo de vocês se despedirem”. E o meu susto inicial com a resposta dele se transformou em uma certeza: todos os dias são dias de despedida, por isso é preciso fazer o nosso melhor, sempre.
Estive ao lado dos meus pais durante todo o processo, do diagnóstico, às consultas, aos exames, tratamentos paliativos e internações. Fui a filha que anotou numa listinha tudo que era preciso fazer após a morte do meu pai.
Era uma quinta-feira de manhã, ele me chamou para perto da cama do hospital, sabia que como jornalista eu vivia com uma cadernetinha na bolsa e disse: “anota aí”. E foi ditando o que eu precisava fazer após sua partida. Segui à risca tudo o que ele pediu.
Sim, eu ainda choro de saudades. Bancas de tangerina nos supermercados me enchem os olhos de água porque meu pai, com 70 anos, subia nos pés para colher a fruta para mim.
E todos os dias, no final da tarde, meu coração aperta porque era o horário que eu ligava para minha mãe diariamente. Dói demais não ter com quem dividir as fotos de lugares legais ou dos netos, como eu sempre fazia com ela.
Mas a vida continua e eu sigo contando histórias sobre eles todos os dias para que eles não morram.
Ayne Regina Gonçalves Salviano é jornalista. Especialista em Didática, mestre em Comunicação e Semiótica, com MBA Internacional em Gestão.
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