Lera nos jornais artigos e entrevistas sobre o filme “Ainda estou aqui” de Valter Salles, que seria exibido no Festival de Veneza naquele domingo. O livro “Ainda estou aqui” de Marcelo Paiva, publicado em 2015, foi a base ao filme com a mesma denominação. O enredo se tece com a história se desenvolvendo em torno de momentos e circunstâncias da família Paiva, tendo em vista, especialmente os episódios decorrentes da detenção pelo governo da ditadura militar, em janeiro de 1971, e o posterior desaparecimento, do deputado Rubens Paiva.
1971. Brasil. Governo Médici. O período mais escuro daquela década de escuridão profunda. Aquele governo militar da vez carregara em sua mochila vivos e sedentos todos os monstros imperiosamente decretados anteriormente:AI 5, Censura absoluta, Institutos de tortura, execuções e desaparecimentos obscuros e sumários. Os casos do deputadoRubens Paiva ora revisitado pelo filme e o do jornalista Vladimir Herzog são uns dos mais emblemáticos. Não obstante, longe de serem os únicos. Foram muitos. (Ao se relembrar destes fatos, naturalmente, decerto por um processo de pensamento metonímico, lhe vieram à mente os episódios similares do tempo presente desencadeados nos governos de Vladimir Putin e de Nicolás Maduro, para ficar com os mais notórios.)
Era “um tempo de guerra”, como também lhe lembrara uma conhecida canção de Edu e Guarnieridaquela época.Embora tudo parecesse um tempo de normalidade. Talvez nem tanto diferente do que fora o a que se referia um também conhecido poema drummondiano: “É tempo de meio silêncio, / de boca gelada e murmúrio, / palavra indireta, aviso / na esquina. Tempo de cinco sentidos / num só. O espião janta conosco.”
Um tempo, pois, em que os espiões estavam infiltrados como alunos, professores em universidades. Nos sindicatos, nas sociedades amigos de bairros, nas associações de pais e mestres das escolas de educação básica, nas comunidades eclesiais de base.
Tempo de aposentadorias compulsórias. De exílios decididos como forma de preservação da vida (Muitos! – intelectuais, cientistas, filósofos, jornalistas, políticos legalizados, poetas, ficcionistas, cantores/compositores, cineastas, dramaturgos, atores). Exílios impostos como se uma “concessão” para não se ter a vida constantemente sob a mira da ira bruta e bronca da arbitrariedade que se auto-outorgara“governo da pátria” (um caso notório foi o de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Chico Buarque não foi. Ficou num jogo de ludíbrio à censura bronca, mas presunçosa, compondo canções ambíguas (“Pai, afasta de mim, este cálice / de vinho tinto de sangue...”)
Fora também o tempo em ele que recebera o certificado que lhe outorgava a garantia de lecionar nas escolas públicas oficiais ou não do País. Decidira, então, numa medida ousada e corajosa, deixar o emprego com que custeava a vida e contribuía com a da família, e “pôr-se no mundo” atrás de se tornar professor de alguma escola do seu Estado. Uma peregrinação, participando das atribuições seletivas de aulas nas diretorias de ensino.
Enfim, o começo. Com um amigo e colega de classe, professores numa escola situada no “cafundó do judas”. Descobriram que neste cafundó viviam pessoas. Que se haviam com o básico, porém não em desconforto. Tudo dali era muito longe e de difícil acesso. Mas conseguiram, entre alguns outros bens, escola aos filhos. Precária, de tábuas, pisodevermelhão, carteiras e lousa. Professores, como eles, que ficavam com a sobra das sobras de aulas rejeitadas por vários motivos, um dos principais aquele de serem em escolas nos “Urubuquáquásnos Pinhéns”.
O que não significava que esses professores poderiam lecionar sem preocupação quanto ao que pudessem ou não ensinar àqueles “capiaus” que existiam longe de tudo. Era gente simples, humilde, mas não parva. Por certo as precariedades, as dificuldades de adquirir o essencial e necessário punham-nos cuidadosos com o que conseguiam. Embora dos cafundós, sempre tinham algum tipo de vínculo, contatos com a “civilização”. E não demoravam muito para apreender, comparar e avaliar o lá e o cá. Outra coisa, a importância, o significado e o valor que dispensavam à figura dos professores por si só faziam com que estes não se acomodassem. E se entregassem à competência e dedicação de bem ensinar e atuar como educadores de que a comunidade se orgulhasse. Era bem uma questão de honra.
Movidos por esses “princípios”, ele e o amigo se dedicaram àquela “missão” que ansiosa e obsessivamente procuraram e haviam conseguido. Tanto se envolveram com a vida social daquela gente, que, quando foram surpreendidos por mandado de detenção expedido pelo governo e conduzidos para o famigerado “DOI-CODI”, a população pasmada, em polvorosa, logo foi ficando entre a revolta, o medo e a dúvida. Como subversivos políticos, se o que faziam eram ações, atuações sempre valiosas à vida da comunidade?
Pois fora assim mesmo naquele tempo. Veio-lhe um outro poema extraordinário: “É preciso fazer alguma coisa”.Este, de Thiago de Mello que, como aqueles, teve de se mandar. Sim, é preciso... E tornou-lhe, em consequência, “Cálice”: Esse “RETORNO” (...) “todo me atordoa / Atordoado, eu permaneço atento / Na arquibancada, pra a qualquer momento / Ver emergir o monstro da lagoa”.
Tito Damazo é professor, doutor em Letras e poeta, membro da UBE (União Brasileira de Escritores) e membro da AAL (Academia Araçatubense de Letras)
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