CRÔNICA

Aqui não os há, como havia lá

Por Tito Damazo | Especial para a Folha da Região/Sampi Araçatuba
| Tempo de leitura: 4 min

O sol pondo a cara ainda não de todo acordada lá no horizonte, e o avô, administrador de fazenda, montava o alazão e saía a averiguar aquele universo de pasto, roça e gente. O pra lá e pra cá da avó na lida da casa. Ele, de leite no curral tomado, preparava com o irmão as pelotas de barro para a caça. Eram as balas por eles consideradas infalíveis para um tiro bem certeiro de estilingue. Preferiam as grandes pombas – juriti, asa branca. Por vezes, as caças difíceis e que demandavam pacientes demoras, diferente forma de procura em espaços outros, onde era possível vê-las: codornas, nhambus; ouviam dizer que até perdizes – eles, porém, nunca as viram).

Tinham por princípio um critério intocável: pássaros que não de comer, não se podia matar. E o decidiram estribados em sentença da avó, que os cozia ou não. Além daqueles, pois, rolinhas, fogo-apagou e as pombas menores, que a avó denominava de amargosas. E aquela sentença ela a reiterava sempre advertindo-os de que, mesmo a caça a comer, matar as pobres avezinhas era pecado, e eles estavam sendo vistos pelos olhos bem vivos de Nosso Senhor Jesus Cristo, que vê e enxerga tudo nesse mundo!

Aquilo abalava-os um pouco. Ficavam meio temerosos, mas acabavam deliberando que não matando senão o que se ia comer, Deus iria perdoá-los. Quando, porém, não se livravam logo dessa ameaça, decidiam ir pescar e depois nadar no Lambari, lá embaixo, no fundão do pasto de colonião. A avó gostava muito de comer lambari. Recomendava que levassem dos grandes, tambiú, de preferência. Medida que exigia paciência e busca de pontos do rio mais a gosto desses peixes. Isso era justamente o que faltava a meninos em férias escolares, descomprometidos de obrigações aos deveres escolares, ora suspensos durante dois meses, para grande felicidade deles. A pesca quase sempre se acabava em ficar brincando no rio.

Havia momentos em que cada um ficava consigo mesmo. E se entreviam com ações preferenciais em que se diferenciavam um do outro. A especial e constante, sempre que podia, para ele, era embrenhar-se em sítios silenciosos que o distanciasse dos outros. Ali ficar olhando a vastidão de pastos, com seu gado, árvores e pomares com pássaros. 

Bois a pastar. Vez em quando, um ergue a grande cabeça de venta empretejada. Põe-se a olhar... Depois lança um berro que lhe parecia sempre melancólico, doído. De novo silenciar. Tornar a aberrar, continuar olhando. Depois, voltar a comer.

Lá em cimão, céu azul sem trisco de nuvens. Ou enchido por elas – enormes, brancas e andejas. E normalmente, nessa lonjura de imensidão, pontos negros esvoaçando, feitos asas deltas quase imperceptíveis. Ali embaixo, a grande sinfonia de diversos cantos e trinos. Os gemidos de pombas e rolinhas. Os gritos atrevidos dos bem-te-vis. E o canto de guerra do empinado joão-de barro, que vem ao chão e marcha pra lá e pra cá, parando de vez em quando, como se em segundo de “sentido”!, e logo, “ordinário, marche”! Em árvores, a casa deste construtor engenhoso e sapiente.

De  muito que administrador de fazenda mais não há. Igualmente de  muito adolescente  mais não. Fez-se ele pai, avô e já bisavô. Entretanto, talvez vincado por aquele estado de intenso bucolismo em anos curtidos e entranhados para sempre, nunca perdeu a determinação de simulá-lo o possível em réplicas mínimas.  

Então, casa com, ou com condições de quintal, tornou-seregra imprescindível. E feitos a muitos pássaros, a cachorros livres, com suas estripulias e especificidades. Vivos e revividos cotidianamente, para espairecimento, divagações, alumbramentos dele e familiares, descobrindo e se surpreendendo com o novo, o diferente infiltrando-se naqueles aparentes, só aparentes, dia a dias repetitivos.     

Duas exceções, no entanto. Nunca mais as fogo-apagou. Não mais as vira em seus quintais, tampouco noutros sítios campesinos. Que é das fogo-apagou com seu carijozado arrulho ímpar? Outra, o joão de barro. Este não raro e ilustre visitante, pois que, vez em quando, aparece. Mostra-se sempre no chão do quintal zanzando de um lado a outro, todo empinado e em passos de marche-marche. Não se sabe ao certo se pastando insetos, se escolhendo gravetos adequados à construção de sua casa, que também não se sabe onde. Infelizmente, em nenhuma das árvores do quintal. Sempre esse procedimento repetitivo. Chega, passeia, bica, bica; pausa, gorjeia com sua empertigada imponência, olhando os lados do quintal; põe-se de novo a passear, voa a uma das árvores, gorjeia a despedida e se manda.   

Por quê? Há o imenso ipê com seus 20 metros (nas fazendas, preferiam as altivas paineiras). Não será, pois, por falta de altura. Entretanto, o cara vem ao quintal, passeia, caça, ou escolhe gravetos, ou faz as duas coisas e se vai. 

A avó sempre teve uma enorme casinha de joão de barro numa cômoda da sala como adorno.  Ele não se cansava de examinar e admirar o considerava uma incrível engenharia. A avó tinha apego a ela. Sem pressa, limpava-a com cuidado e esmero. A casinha fora envernizada. Brilhava com as escovações diuturnas dela.

Em não mais havendo os avós, teve a intenção de querê-la para si. Viu, entretanto, a mãe manter casinha e cômoda consigo tal como fazia antes sua mãe. Recuou, pois. Compreendeu que, essencialmente, prendia-o à peça a sedução pelo engenho, a ela, claramente a intensa memória afetiva dos pais. 

Tito Damazo é professor, doutor em Letras e poeta, membro da UBE (União Brasileira de Escritores) e membro da AAL (Academia Araçatubense de Letras)

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