CRÔNICA

Escola I

Por Tito Damazo | Especial para a Folha da Região
| Tempo de leitura: 4 min

Aquela ilogicidade do fato, em algum momento de seu cotidiano, decerto induzida pela circunstância, de forma imprevista e súbita, se insurge no pensamento. E dispara o mecanismo da mesma reflexão – por que isto lhe sucedera?

Isto: Proviera de uma família de gente simples, com escolarização precária. As mulheres, domésticas lavadeiras e passadeiras de “roupa pra fora”. Os homens operários de fábrica de telhas e tijolos. Um, porém, o pai, sapateiro tido de mancheia, que, no entanto, exercia a profissão com notória lassidão, beirando o descompromisso, o que, por consequência, lhe acarretava ainda mais dissabores com aquela atividade. Um homem em inquieta incompletude.

Era, pois, de família de gente cuja escolaridade não fora além do precário. Logo, uma ambiência desprovida deleituras, de livros, de escritos, senão um certo hábito de troca de cartas com parentes. Prática comum, mas pouco constante, a ponto de não as carregar nas lembranças efetivamente. Estas sim aconteciam vez em quando. (“Escrevo essas mal traçadas linhas esperando que vai encontrar vocês com muita saúde e felicidades. Aqui nós vamos indo bem graças ao bomDeus...”).

Sem que bem o percebesse, tornara-se o “escrivão” de cartas da família aos parentes. Do que também acabara por tomar gosto. Por certo pelo fato de ele estar já na quarta série primária, e ter relatado em casa uma tia “rica” da família, amiga da sua professora, dona Anita, que esta lhe dissera que ele era bom aluno e produzia bonitas redações. A “notícia” esparramou-se pela família (ele fez o que pôde para esconder o envaidecimento).

Mais nada mesmo. Senão ainda, por vezes, no afogadilho dos afazeres e precisando urgente de alguns de comer básicos, a mãe ditava-lhe um bilhete em que ia escrevendo os mantimentos que ele buscaria na venda de seu Zé Antônio, recomendando que levasse a caderneta pra ele anotar.

Não cria que daí pudesse lhe ter vindo o gosto da leitura, nem o de escrever. Tampouco fora o puro fato de ter realizado por completo o curso primário (com noite de formatura e tudo!, tal era ainda um feito diplomar-se no curso primário da escola pública do grupo escolar da cidade).

Ou talvez pudesse, sim, ser um incipiente fator na somatória com outros maiores, pensara muito depois. E isso foi-lhe amadurecendo mais e mais a compreensão daquilo lhe persistia um incômodo enigma. Outro que lhe pareceu significativo veio à tona. Aos sábados, dona Anita, no primeiro período das aulas, contava e lia a eles histórias, sobretudo as do ‘Velho Testamento”. Após o intervalo, propunha-lhes escrever, criando histórias suscitadas por suas leituras, ou de tema livre. Ele gostava visivelmente deste momento (daí, talvez, o fato de ela ter comentado suas redações com a “tia rica”).

O certo é que o operário de construção de telhas, enquanto se ensimesmava consigo mesmo, quando e o quanto pudesse, que o gosto pela leitura e por escrever mais o pegava, mais lia o que o acaso lhe servisse para ler: gibis, quadrinhos (e mesmo algumas “notícias” que aprendeu se denominarem reportagens) do Estadão de domingo que seu avô administrador de fazenda assinava e lhe passava depois.

No então colegial é que adquirira a “fama” de “viver escrevendo “versos”. Tornou-se praxe entre os colegas de classe e de escola (pois o “diz que diz” a respeito de alguém, seja mal, seja bem se espalha como o quê) dizer que ele era o “poeta” da classe. Nunca conseguia precisar se assim o chamam por convicção ou ironia (mais desconfiava que fosse a segunda opção).

O fato é que isso pegou. Os professores mesmo já o diziam, e um ou outro pediam que lhes mostrasse alguma poesia que escrevera. Deles, quem mais queria muito conhecer os “poemas” era a professora de matemática. É, estas coisas acontecem. Ela era um exemplar dos mestres de ciências exatas apaixonados por literatura. Tornou-se a confidente leitora de seus “poemas”. E lhe dizia, sem rodeios e titubeios, à queima roupa, isso está ruim; isso está muito bom. E comentava as razões do porquê assim lhe parecia ser.

A tal fama cravou responsabilidades nele. Seria o orador da turma. Apreensivo, ansioso, passara os meses restantes ao término do curso escrevendo e reescrevendo o discurso, mostrando a um, a outro entre os colegas mais confiáveis; a um ou outro professor e, evidentemente, a dona Marília, sua confidente. O que não revelou a ninguém, de ninguém tomou opinião, muito menos de dona Marília, foi o que todos souberam surpresos durante a leitura de seu discurso. Fizera um poema em homenagem a ela (sua confidente, afinal!) que fora a patronesse da turma.

A outra responsabilidade. Um colega “maluco”, se encarregou de organizar uma excursão de formatura, cujo roteiro, durante vinte dias!, foi pelo litoral sul do País, passando por Montevidéu e Buenos Aires. Essa “loucura” realizada “comeu-lhe”, durante os três anos uma parte nada pequena do seu salário mensal de ceramista. E ele fora incumbido de escrever o “diário de bordo”. Foram dura obrigação de escrever aquilo e emoções jamais imaginadas por um “pé de cana” avanhandavense de origem metido a escritor de diário de bordo e turista “comedor de farofa”.

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